Por Sophia de Mello Breyner

Revista Paz e Amizade, n.º 13, ano IV/79, pp. 12-16

Grandeza de Tolstoi

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Teixeira de Pascoais dizia que o romance é uma degenerescência burguesa da epopeia. Tolstoi é o menos «burguês» de todos os escritores modernos e a «Guerra e Paz», a sua obra-prima, a obra em que ele deu a inteira medida do seu génio, a obra que ele escreveu na plenitude da sua inspiração e da sua vida, não é um romance mas sim uma epopeia.

Como todas as epopeias a «Guerra e Paz» aparece numa época de transição; é o canto dum mundo perdido e é o canto dum mundo que com a sua poesia e os seus valores, a sua beleza e o seu pitoresco, o seu estilo e a sua sensibilidade está prestes a ser destruído. E neste momento em que tudo vai mudar o poeta ergue-se entre um poente e um novo dia para descrever e gravar para sempre a imagem de tudo quanto nunca mais regressará. E assim Tolstoi sendo um homem que tanto contribuiu para o aparecimento dum novo mundo é também o homem que preserva do esquecimento e do tempo a imagem do mundo antigo.

Os anos em que Tolstoi escreve a «Guerra e Paz» são na sua vida um momento de equilíbrio, de felicidade, de encontro consigo próprio e com a vida. É uma época em que Tolstoi diz «agora que cada instante é real e não provisório como antigamente». É uma época em que nascem os seus primeiros filhos e Tolstoi vive inteiramente integrado na realidade e na humanidade, em Iasnaia Poliana, ao lado das árvores e da terra, ligado ao ritmo das estações, escrevendo como uma árvore dá fruto, na plenitude da sua inspiração e da sua experiência, cumprindo o ciclo da vida.

A obra de Tolstoi é diferente da obra de outros escritores modernos. Há nela uma tonalidade, uma objectividade, uma grandeza natural que só encontramos em algumas das obras máximas da humanidade: na Bíblia, na Ilíada, na Odisseia, na Divina Comédia! Quando lemos a «Guerra e Paz» e a «Ana Karénina» temos a impressão de que não é um escritor a contar-nos a vida, mas sim a vida a contar-se a si própria. Na atitude de Tolstoi em frente da realidade não há nenhum subjectivismo, nenhum «ponto de vista». Tolstoi conta-nos o Mundo não como ele o quis, ou o inventou, ou o viu, mas como o Mundo é em si, na sua própria natureza. É como se a realidade que está nos seus livros não tivesse passado através de nenhum intermediário.

Grandeza de Tolstoi foto1Creio que há em Tolstoi duas qualidades profundas que são a condição dessa inteira objectividade: a sua normalidade e o facto de ele não ter sido um literato.
É evidente que o seu génio não nasce da sua normalidade nem do seu alheamento dos propósitos literários. Mas essa normalidade e o facto de a vida ter sido para ele sempre mais importante do que a arte são as qualidades que tornaram possível a inteira plenitude da sua inspiração, a lucidez da sua consciência, a verdade nua e objectiva do seu testemunho.

O mito do artista anormal é um dos mitos mais falsos da literatice universal. Pessoalmente tenho constatado que todos os falsos artistas que conheço são pessoas sem sentimentos normais. A criação artística com a exigência, o esforço, a tensão constante que impõe ao criador pode dar-lhe aos olhos dum observador superficial ou parcial a aparência de anormalidade pois a originalidade e tudo o que sai do comum podem ser tomados pelo homem comum como anormalidade. Há aqui uma confusão entre diferente e anormal. Ora um homem pode ser diferente, ser fora do comum e não ser anormal, como por exemplo Goethe, que sendo um homem normal foi um homem muito diferente do homem comum. Normal deriva de norma. Se tomarmos norma no sentido de «maior frequência», confundiremos normal com frequente, comum, o que não é exacto. Se tomarmos «norma» no sentido de «lei» vemos que é normal tudo aquilo que está de acordo com as leis profundas da natureza, da humanidade e da vida.

O artista não é necessariamente um «anormal» nem é geralmente um anormal, mas pode ser acidentalmente um anormal naqueles aspectos da sua personalidade, que são exteriores à sua arte.

Proust por exemplo foi um asmático. Mas a sua obra não é uma história de asmáticos, para asmáticos, segundo um ponto de vista asmático. A longa respiração equilibrada e repousada das suas frases sinuosas desvanece em nós qualquer lembrança da sua incapacidade física de respirar. Assim a exacta e lúcida objectividade do seu testemunho sobre todos os vícios desliga-se de toda a vida pessoal e supera todos os vícios que porventura nele houvesse. O extremo oposto de Proust é Gide. A obra de Proust é uma história de verdade. A obra de Gide é uma autodefesa, uma autojustificação, uma desculpa, uma máscara, uma teoria. A obra de Proust é escrita em função da imaginação e da inteligência, do amor e da saudade, da busca do passado, da tentativa de encontrar o absoluto e a felicidade. A obra de Gide é escrita em função dum vício. É uma história de vícios, para os viciosos, escrita segundo um ponto de vista vicioso. Por isso é uma obra inautêntica e inválida. Mas não posso esgotar o assunto. O conceito de normalidade presta-se no actual mundo da literatura às mais fáceis especulações.

Tolstoi foi um homem que viveu segundo a natureza, segundo a vida, segundo a humanidade. A sua vida é extraordinária pela intensidade e inteireza com que ele viveu todas as experiências humanas normais. Desde a maneira como vivia a renovação das estações, até à maneira como lutava pela justiça, no sentido do amor e da responsabilidade, no seu desespero de não encontrar a perfeição, ele é o exemplo de tudo aquilo que faz com que o homem seja verdadeiramente humano, verdadeiramente natural, verdadeiramente normal.

É igualmente importante o facto de Tolstoi não ser um literato. De não ser um literato e de não ser um esteta. Para ele a justiça, a verdade, a vida eram muito mais importantes do que a obra de arte. Tolstoi era um homem que tendo a paixão da música, se condenava a si próprio por estar a ouvir a «Sonata a Kreutzer» enquanto outros homens sofriam. Em Iasnaia Poliana no túmulo de Tolstoi está escrito:

«Em Iasnaia Poliana,
Neste lugar da floresta chamado Stari-Zakas
À beira da ravina, junto à fonte
Onde há miosótis na Primavera,
Ali onde o pequeno Nikolenka dizia ao pequeno Liovotchka
que estava enterrada a fórmula do amor universal,
gravada num pedaço de madeira verde.
Aqui repousam, misturados com a terra russa.
Leo Nikolaevitch Tolstoi
E as suas grandes ilusões
- Até ao dia em que estas, talvez,
De erros tornados verdades,
Mais fortes do que a violência
Acordem com os miosótis,
Do seu sono».

Grandeza de Tolstoi foto2Se Tolstoi escreveu a «Ana Karénina» e a «Guerra e Paz», foi porque ele era o homem que criou a doutrina da não-violência. Podemos não acreditar em muitos dos ideais de Tolstoi e acreditar na sua obra. Mas a grandeza dessa obra nasceu de facto de ele ter sido um escritor para quem escrever era secundário e para quem a finalidade da vida era encontrar a «fórmula do amor universal».

Foi o facto de ele ter dentro de si esse amor, essa simpatia, essa comunhão com a realidade concreta de todos os homens que dá aos livros que ele escreveu uma verdade tão viva que cada um de nós renasce e se encontra com a sua própria alma ao ler a passagem de Natacha em frente do céu constelado duma noite de Verão.

Os três romancistas modernos que mais admiro são Tolstoi, Proust e Dostoiévsky. Penso que dos três o maior é Tolstoi.

Mas a influência de Proust e Dostoiévsky na literatura e na mentalidade modernas é muito maior do que a influência de Tolstoi. Por três razões.

Primeiro, porque é mais fácil literariamente seguir as direcções, os caminhos, as inovações de Proust e Dostoiévsky do que seguir Tolstoi. Tolstoi escreveu com tanta naturalidade, com tanta simplicidade, com tanta pureza e a sua forma de inspiração é tão profundamente um dom inato e pessoal que é completamente impossível extrair dele uma receita, uma fórmula, uma estética. Ninguém pode nem tentar escrever «à la manière» de Tolstoi.

Além disso, humanamente, da obra de Proust ou Dostoiévsky é possível (com mais ou menos lógica ou legitimidade) fazer derivar princípios que não são (ou não parecem) difíceis de seguir. Mas é mais difícil viver segundo os princípios contidos na obra de Tolstoi.

Em terceiro lugar, a humanidade moderna tem uma constante necessidade de se debruçar sobre os seus abismos interiores e esses abismos são o tema permanente da obra de Proust e Dostoiévsky. Em Tolstoi esses abismos são menos óbvios, são, como na vida, menos aparentes e mais raros. E Tolstoi trata-os como um tema entre todos os outros temas. Pode-se dizer que os abismos da vida interior ocupam na obra de Tolstoi exactamente o mesmo lugar que ocupam na vida real. Na obra de Proust e Dostoiévsky ocupam o mesmo lugar obcecante que ocupam na consciência da cultura actual. Pode-se por isso dizer que a obra de Tolstoi está mais de acordo com as leis eternas da vida e a obra de Proust e Dostoiévsky mais de acordo com o espírito e a mentalidade da nossa época.

Preferir Dostoiévsky a Tolstoi é, entre certo género de leitores, um lugar-comum. Porque Dostoiévsky fornece a cada pessoa uma desculpa e Tolstoi apesar, ou por causa, da sua extraordinária humanidade, propõe a cada pessoa uma exigência. Um bêbado que lê Dostoiévsky pode julgar-se um iluminado; um bêbado que lê Tolstoi vê que é simplesmente um bêbado. Os heróis de Tolstoi são casos humanos; os heróis de Dostoiévsky são muitas vezes casos patológicos. O «Idiota», o mais dostoievskiano de todos os livros de Dostoiévsky, apesar de todas as suas iluminações, de todos os seus momentos geniais e de toda a sua beleza, não é a história da evolução duma consciência, mas sim a história da evolução duma doença. Os heróis de Tolstoi nunca são casos patológicos ou semipatológicos, mas sim homens normais capazes duma responsabilidade inteira. A morte de Ana Karénina é uma morte voluntária e consciente e o seu desespero é lúcido e espiritual.

Mas Tolstoi e Dostoiévsky, apesar de todas as suas diferenças, são dois russos que têm muita coisa em comum: a fé no bem, a esperança na verdade, a confiança no homem e no arrependimento. A antítese é muito mais profunda entre Tolstoi e Proust. Tolstoi foi um homem normal, integrado na vida, na natureza e na humanidade. Proust era um homem doente e desligado de tudo. Era um homem desenraizado, exilado do perfume das flores e da sua pátria espiritual. Creio que é muito importante o facto de Proust ser um judeu. Por trás de toda a influência da cultura francesa, por trás dos temas de Saint-Simon e da condessa de Sévigné, ao lado do seu extraordinário poder de análise exterminadora, há em Proust um lirismo que tem profundas afinidades com o lirismo da Bíblia. Os seus personagens morrem pela experiência e pela análise, mas primeiro nascem da imaginação, as suas metáforas têm a mesma construção íntima e o mesmo esplendor que as imagens metáforas do Cântico dos Cânticos. Quando Proust fala da beleza da Duquesa de Guernantes ou da beleza de Saint-Loup, parece Salomão falando da beleza de Sulamite. E as suas longas frases não são bem frases, mas uma forma coordenada que é esteticamente um todo, como os versetos da Bíblia. E a sua imaginação é da mesma qualidade que a imaginação dos homens que nos descreveram as riquezas do Templo de Salomão.

Grandeza de Tolstoi foto3Há ainda duas profundas diferenças. Para Proust a arte é a finalidade da vida. Para Tolstoi o bem, a verdade, a justiça, a fórmula do amor universal são a finalidade da vida. Tolstoi escreveu a sua data integrado em tudo, unido a tudo. Proust escreveu a sua obra na solidão e para a escrever desligou-se de tudo.

Mas a grande diferença que há entre Tolstoi e Proust e Dostoiévsky, a diferença que faz a grandeza de Tolstoi, é a sua objectividade. Entre ele e a vida não há nenhuma interferência. A arte de Tolstoi está para o romance assim como a cultura grega está para a escultura. Assim como a escultura grega encontrou as proporções exactas e reais do corpo humano assim também Tolstoi encontrou as proporções exactas da alma humana. O personagem tipicamente tolstoiano é o negociante do «Senhor e Servo». O negociante passou a vida a explorar a humanidade em geral e o seu servo Nikita em especial. Mas o negociante acaba sacrificando a sua vida para salvar o seu servo Nikita. Esta confiança na verdade final de cada homem é aquilo que define a humanidade de Tolstoi.

No entanto, Tolstoi era um homem que não tinha nenhuma indulgência para o mal; uma carta sua diz:

«O mais horrível de tudo é que todos os que escrevemos, Potopenko tal e qual como os Tchékhov, os Zola, os Maupassant, já nem mesmo sabem onde está o bem e onde está o mal. Aquilo que é mal em regra geral acham-no bom e sob o pretexto da arte, servem-no ao público que assim corrompem».

Por isso a Tolstoi, o homem que desde a sua infância procurou constantemente a fórmula do amor universal, se aplica tão bem a frase de Chesterton: «Aquele que mais ama a humanidade é aquele que mais odeia a desumanidade».

 
 

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