paz-e-amizade-capa-33No dia em que a Associação Iúri Gagárin faz 39 anos, publicamos um artigo intitulado «Profundas Raízes de uma Grande Amizade», que viu a luz do dia nas páginas da revista Paz e Amizade, em 1984, a assinalar o 10.º aniversário da Associação Portugal-URSS.

 

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Artigo publicado na revista Paz e Amizade, n.° 33, ano 9.°/1984
a assinalar o 10.º aniversário
da Associação Portugal-URSS

 

PROFUNDAS RAÍZES
de uma GRANDE AMIZADE

por ARMANDO MYRE DORES
Vice-Presidente da Direcção da Associação
Portugal-URSS

 

 

Este artigo tem como objectivo fazer uma breve e incompleta retrospectiva histórica sobre os esforços feitos ao longo dos anos, mesmo nas mais duras condições de repressão e de censura, para divulgar a realidade soviética em Portugal.

Pensamos que isso explica em grande medida a enorme audição e popularidade que a nossa associação adquiriu desde os primeiros dias da sua existência.

Com efeito, quando a associação aparece, ela encontra um terreno adubado pelos esforços de muitos e muitos milhares de portugueses para quem a União Soviética, a revolução que lhe deu origem, as suas grande realizações económicas, sociais, culturais e científicas, os seus feitos gloriosos na guerra contra o fascismo, a sua política internacional de paz e solidariedade com todos os povos em luta eram e são uma razão de esperança e de simpatia, um exemplo exaltante de uma nova ordem social liberta da exploração e onde se lançaram as bases de uma sociedade onde o homem deixa de ser um lobo para o homem e cria relações de verdadeira fraternidade.

É em grande parte devido a esse trabalho de dezenas de anos que podemos verificar que, ao contrário de outros países, a propaganda anti-soviética nunca ganhou em Portugal a adesão das grandes massas.

E além disso, nos meios intelectuais portugueses dificilmente se encontra personalidades verdadeiramente representativas que alinhem em campanhas anti-soviéticas. A realização em Portugal, em Outubro de 1983, das chamadas «Audiências Sakharov» deu uma bela imagem de que o anti-sovietismo não colhe nos meios da intelectualidade portuguesa, nem mesmo nos sectores que têm opções políticas muito distantes das que dominam no País dos Sovietes.

Tem, igualmente, este artigo como objectivo chamar a atenção para a riqueza deste assunto e para a necessidade de o estudar aprofundadamente, o que poderia vir a constituir o fulcro de uma grande realização da nossa Associação em que se fizesse uma, retrospectiva histórica completa do que foi o esforço de divulgação da URSS em Portugal e as tentativas de intercâmbio com aquele país desde 1917.

A Revolução de Outubro na Rússia desencadeou imediatamente no nosso país as mais díspares reacções. Por um lado, a burguesia e a sua imprensa reagiram da forma mais furiosa e começaram aquela campanha de falsidades, calúnias e deformações sobre o País dos Sovietes, as suas realizações e dirigentes que continua até hoje. Seria curioso comparar o que dizia nessa altura a imprensa portuguesa sobre as importantes modificações que ocorriam então naquele país e o que diz hoje a propaganda anti-soviética, para verificar que os inimigos do socialismo não têm grande imaginação. Desde considerar Lénine um bandido e agente dos alemães até classificar como «o fim da civilização» a abolição da propriedade privada, todos os meios eram utilizados para denegrir o primeiro Estado de operários e camponeses da História.

Ao mesmo tempo, os assalariados agrícolas (sobretudo do Alentejo e do Ribatejo), os intelectuais progressistas e a gente do povo em geral saudaram entusiasticamente a Revolução Russa e as transformações sociais e políticas que ocorriam na nova República Soviética como um acontecimento de grande importância que constituía um passo de gigante na emancipação das classes trabalhadoras que vinha alterar a face do mundo e lançar as bases de uma nova civilização.

O entusiasmo pelas obras de Marx e Lénine e as novas ideias era enorme entre a intelectualidade e no movimento operário, discutindo-se acaloradamente a Revolução Russa e as ideias comunistas e dando-se os primeiros passos para organizar a solidariedade com a nova Rússia Soviética, alvo do ataque combinado de 14 potências estrangeiras e do inimigo interno, numa feroz guerra civil. A imprensa operária divulga a nova realidade soviética, distinguindo-se nisso a revista «A Sementeira» e os jornais «A Batalha e «Bandeira Vermelha».

Em resultado das grandes discussões havidas entre o operariado, sobretudo nos meios sindicais, das experiências da revolução russa e do amadurecimento do próprio movimento operário forma-se, em 1921, o seu partido independente de classe o PCP.

O movimento de opinião em favor da URSS e da divulgação das suas realizações teve várias tentativas de expressão organizada. Em 1921 é criada a «Associação dos Amigos da Rússia», em Portugal.

Em 1918, o governo português cortara relações diplomáticas com o governo da Rússia Soviética.

Antes do 28 de Maio de 1926 houve uma tentativa de restabelecimento das relações diplomáticas entre Portugal e a Rússia Soviética, feita pelo governo de José Domingos dos Santos e cujo mérito se deve em grande parte ao Ministro dos Negócios Estrangeiros desse governo, o grande escritor humanista português, Dr. João de Barros.

A tentativa gora-se e pouco depois, com o golpe fascista de 28 de Maio, cerra-se uma negra cortina de silêncio sobre a União Soviética, que se vai manter até ao 25 de Abril de 1974, embora rompida frequentes vezes e com rara persistência pelo movimento democrático e progressista português ao longo de quase 50 anos.

Nos anos 30 formou-se a «Liga dos Amigos da URSS» que era particularmente popular entre os estudantes.

A divulgação da realidade soviética em Portugal fazia-se das mais diversas formas - leitura de livros e brochuras em línguas estrangeiras sobre a URSS, tradução(1) de materiais diversos sobre aquele país, palestras sobre os mais diversos temas em que se aludia à vida na União Soviética.

Teve grande importância a divulgação pelos mais diversos canais das conquistas da ciência e da técnica soviéticas, o impacto da nova literatura proletária, a difusão da música russa e soviética, a influência do pensamento marxista e das obras teóricas de autores soviéticos, que deram uma contribuição muito importante para formar as ideias progressistas de muitos intelectuais portugueses, o que por sua vez tinha larga repercussão sobre as massas através de artigos publicados, de conferências, de obras de conteúdo avançado. Mesmo as raras referências à União Soviética na imprensa oficial, ferozmente censurada, eram lidas avidamente pelos amigos da URSS que se habituaram por uma longa experiência «a ler nas entrelinhas.

Durante a guerra de Espanha, os democratas portugueses seguiram apaixonadamente a evolução dos acontecimentos e as suas simpatias estavam do lado do «campo vermelho», que tinha o apoio decidido, e quase único, no campo internacional, da União Soviética.

Com o advento da Segunda Guerra Mundial e a entrada da União Soviética na guerra, a simpatia pela URSS cresce incomensuravelmente. Esta simpatia era tanto mais compreensível quanto era claro para toda a gente que, se a Alemanha nazi vencesse a guerra, os povos da Europa seriam reduzidos à escravidão, e era evidente o papel decisivo da URSS na derrota da agressão hitleriana.

Nas casas de muitos portugueses, os avanços do Exército Soviético no terreno eram seguidos e assinalados nos mapas da Europa e os nomes dos mais eminentes chefes militares soviéticos e as vitórias dos seus exércitos eram largamente conhecidas, pelos democratas portugueses.

A vitória da URSS em Stalinegrado, a heróica resistência dos soviéticos no bloqueio de Leninegrado, as batalhas de Moscovo e de Kursk, a libertação da Ucrânia e da Bielorússia e de sucessivos povos da Europa Oriental e a conquista de BerIim eram acontecimentos conhecidos e comentados vivamente nos meios democráticos portugueses e entre o povo em geral.

Esta popularidade dos êxitos soviéticos na guerra era tanto mais notável quanto o país estava literalmente submerso por propaganda nazi – pela rádio, pela imprensa e outros variados meios de propaganda – brochuras, revistas, postais, etc.

Neste contexto desempenharam um enorme papel as emissões da Rádio Moscovo, que eram atentamente seguidas por enorme inúmero de portugueses (há quem afirme que era a segunda rádio estrangeira de maior audição em Portugal depois da BBC) e a imprensa clandestina, com especial relevo para o jornal «Avante!», que em todos os números dedicava uma página inteira aos sucessos do Exército Soviético. Vale a perna assinalar que o título dessa rubrica era «A URSS vencerá!», o que dá bem a medida da confiança que desde a primeira hora as forças progressistas mais consequentes tinham na vitória do Exército Soviético, mesmo muito antes de ser visível para toda a gente a inevitabilidade dessa vitória.

No fim da Segunda Guerra Mundial já não era mais possível ao regime fascista reprimir as manifestações de simpatia e apreço do povo português pelo País dos Sovietes. Logo nas manifestações da vitória da coligação anti-hitleriana, esses sentimentos se expressaram de forma implícita (desfilando com as bandeiras dos aliados à cabeça da manifestação e com um pau de bandeira simbolizando a bandeira da URSS) ou de forma irreprimível quando os manifestantes vitoriavam a União Soviética como sucedeu em tantas terras de Portugal em manifestações de alegria pela vitória contra o nazi-fascismo.

Depois da guerra, com a maior abertura política que se deu até ao começo da «guerra fria», foi possível editar mesmo alguns livros sobre aspectos da vida da URSS ou de autores soviéticos nalgumas editoras progressistas. Mesmo na imprensa, sobre a qual Salazar dera as mais férreas instruções à Censura para «ignorar» a União Soviética, não era possível esconder completamente o papel da URSS na guerra e em toda a vida internacional no após-guerra.

Com o começo da «guerra fria» e as histéricas campanhas anti-soviéticas em toda a vida política portuguesa, o interesse pela URSS teve de manifestar-se de formas encobertas - eram as reuniões clandestinas ou almoços sob um falso pretexto para comemorar o 7 de Novembro, eram as bandeiras desfraldadas em locais visíveis nesta ou naquela terra com maiores tradições revolucionárias para assinalar aquela data, eram as audições da Rádio Moscovo, que nalguns casos tomavam proporções maciças - havia ruas em algumas terras em que à hora da emissão da Rádio Moscovo era nitidamente perceptível que grande parte dos habitantes escutava aquela rádio. Mas também legalmente as tentativas de dar a conhecer a realidade soviética em todos os domínios continuavam.

Seria interessante estudar as influências directas ou indirectas da arte e literatura russa e soviética sobre o neo-realismo português e noutros domínios da vida intelectual portuguesa, o que não deixaria de espantar muita gente como foi grande essa influência apesar de todos os impedimentos do regime fascista.

Em 1957 um grupo numeroso de jovens portugueses participou no Festival da Juventude e dos Estudantes em Moscovo. Depois do seu regresso a Portugal foram quase todos presos.

Neste mesmo ano dá-se um acontecimento que viria novamente pôr a União Soviética no centro das atenções de todo o mundo - o lançamento do primeiro Spútnik. Os êxitos espectaculares da URSS no domínio do espaço cósmico, na energética atómica e noutros campos da ciência e da técnica tornaram claro para toda a gente que a Rússia dos mujiques se tinha tornado numa potência de elevado progresso cultural e científico que deixava para trás em muitos domínios as potências capitalistas mais desenvolvidas. E o interesse pela URSS recrudesce. Reflexo desse interesse é a edição clandestina, de Novembro de 1954 até 1961, do boletim «Portugal-URSS» que divulga as realizações e os sucessos do povo soviético e que se pode de certo modo considerar o precursor da nossa revista «Paz e Amizade».

Data também desta época a autorização para a exibição em Portugal de alguns filmes soviéticos que tiveram enorme sucesso.

No final da década de 50 e por toda a de 60, vários cientistas portugueses procuraram estabelecer relações com diversas instituições científicas soviéticas, através dos respectivos periódicos e demais publicações das suas especialidades.

Assim, foram publicadas nas revistas soviéticas de vários sectores científicos informações sobre a ciência portuguesa e, vice-versa, a imprensa especializada portuguesa pôde publicar notícias sobre a ciência soviética, além dos laços de boa amizade que se foram firmando individualmente entre os cientistas de ambos os países. Sucedeu isso, por exemplo, com a Revista da Faculdade de Ciências, com a Gazeta de Matemática, com os Anais Portugueses de Psiquiatria, entre outros. Com estes últimos é até de recordar um episódio curioso: o conhecido psiquiatra e académico soviético V. Morózov, de Moscovo, ao saber que colegas portugueses manifestavam nas suas publicações conhecimento e interesse pela respectiva ciência soviética, decidiu, apesar da sua idade, estudar a língua portuguesa, como ele próprio referiu em entrevista dada à imprensa.

Em Portugal, assinalam-se nos fins dos anos 50 – começo dos anos 60 os primeiros passos para o ensino legal da língua russa nos meios científicos e universitários em Lisboa e Coimbra.

Nos últimos anos do regime fascista, o intercâmbio com a URSS e a divulgação da realidade soviética em Portugal vão impondo cada vez mais a sua legalidade e assiste-se aos primeiros passos de um intercâmbio cultural e desportivo, com a exibição de artistas do nosso país na União Soviética, a ida de delegações de escritores portugueses à URSS, a vinda do circo de Moscovo a Portugal e de alguns artistas soviéticos, nomeadamente em concursos de âmbito internacional, a edição de numerosas obras de autores soviéticos no nosso país, ao mesmo tempo que prosseguem manifestações de interesse pela URSS, mais ou menos clandestinas, que chegam a tomar proporções pouco comuns, como a exibição do filme «Couraçado Potiómkine», com a presença de centenas de pessoas numa Faculdade de Lisboa.

Esta é, resumidamente, a panorâmica do muito que foi feito durante anos e anos para aproximar os povos de Portugal e da União Soviética.

Neste ano do 10.º aniversário da Associação Portugal-URSS quisemos recordar e prestar homenagem aos muitos e muitos portugueses que arrostando com as maiores dificuldades ergueram bem alto a bandeira da amizade, da compreensão e da paz com o grande povo da União Soviética.

 

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(1) A Biblioteca Cosmos foi iniciada com a tradução de O Homem e o Livro, do soviético M. Iline.