segundo o Embaixador Português em Moscovo, Dr. Mário Neves

Revista Paz e Amizade, n.º 1, ano I/76, pp. 27-28

As Relacoes entre Portugal e a URSS

Fac-simile (pdf)


Nada justifica uma controvérsia sobre as relações luso-soviéticas

«Eu não posso compreender muito bem que se fale em «aspectos controversos» nas nossas relações, entre Portugal e a União Soviética, porque desde que elas foram estabelecidas, precisamente em 9 de Julho de 1974, as coisas têm corrido, pelo que nos é dado conhecer directamente através de todos os contactos que aqui temos tomado, de forma a não justificarem quaisquer aspectos controversos. Eu sei que nalguns casos parece terem existido tais aspectos cujo fundamento, francamente, eu não posso justificar de modo nenhum. É claro que devemos ter presente que o facto de Portugal nunca ter tido relações diplomáticas com a União Soviética explica um certo desconhecimento de parte a parte e, por conseguinte, algumas dificuldades que são perfeitamente compreensíveis: não nos conhecíamos, os portugueses não sabiam bem como se passavam as coisas na União Soviética e a União Soviética tinha de Portugal, devo dizer que nalguns casos, um conhecimento muito maior do que eu próprio supunha, mas, em todo o caso, não eram tão amplos esses conhecimentos que pudessem facilitar, logo, os primeiros contactos.

Os primeiros passos das relações entre os dois países

Houve um elemento fundamental para, no entanto, nos abrir as maiores facilidades: é que, realmente, desde que aqui chegámos (foi a 28 de Outubro do ano passado que apresentei as minhas credenciais no Kremlin). desde que aqui chegámos, dizia, encontrei sempre um ambiente da maior simpatia, calor humano, quer das entidades oficiais, quer do próprio povo. E isso foi um factor muito positivo para o desenvolvimento de todas as nossas tarefas, aqui. Evidentemente que havia problemas, que resultavam exactamente de um afastamento completo, durante tantos anos, e havia problemas burocráticos a resolver. Havia inclusivamente problemas de ordem material (como a própria instalação da Embaixada)... É sabido que estivemos, ainda, alguns meses instalados em hotel, não só no que diz respeito à parte residencial dos próprios funcionários, mas, inclusivamente, e essencialmente no que diz respeito aos próprios serviços da chancelaria. Mas tudo isso se resolveu, uma vez que conseguimos encontrar, mercê da boa vontade que aqui deparámos perante as autoridades respectivas, um edifício em esplêndidas condições para termos uma Embaixada condigna. Uma vez resolvido esse primeiro aspecto - e isso envolveu problemas de vária ordem, como sejam, não só a escolha do edifício como a sua instalação, (mobilá-lo, distribuir serviços, instalar telefones, etc.), todo esse conjunto de problemas que envolve a instalação de um serviço dessa natureza... - uma vez resolvidas todas essas questões, pudemos dedicar-nos à tarefa, grata tarefa, aliás, de desenvolver o estabelecimento de boas relações entre os dois países. Essas relacões têm tido facetas diversas. No aspecto económico, visto que era uma das nossas preocupações prementes, alguma coisa se fez já, apesar das dificuldades resultantes do desconhecimento a que aludi. No aspecto cultural, também se sente hoje um maior conhecimento e a expansão de publicações e notícias objectivas a respeito de um lado e de outro. No campo técnico-científico podemos já beneficiar de algumas vantagens que resultam de um certo avanço em determinados campos que podem ser úteis ao progresso da nossa gente. Entretanto, desde que para aqui viemos e até logo nos primeiros dias de aqui estarmos, se começaram a deslocar a Moscovo delegações oficiais, aos mais diversos níveis e delegações sectoriais, sobretudo relacionadas com o desenvolvimento económico, técnico e científico. Devo começar por referir a vinda da primeira delegação, presidida pelo então ministro de Estado, dr. Álvaro Cunhal, e, depois, de outros membros do Governo aqui terem estado, a visita fundamental do então ministro dos Negócios Estrangeiros, dr. Mário Soares, que permitiu a assinatura de um documento que ainda hoje é considerado como a base das nossas relações e, finalmente, a vinda recente de Sua Excelência o Presidente da República que, embora tendo estado curto espaço de tempo na União Soviética, aqui teve conversações da mais alta importância para o esclarecimento das nossas boas relações, para o conhecimento mútuo dos nossos dois povos.

Alguns porquês das dificuldades encontradas no sector económico

No que diz respeito, propriamente, ao aspecto económico, que tem sido um daqueles que mais atenções tem despertado, de um lado e de outro, eu devo dizer, francamente, que o que se tem passado nesse domínio já era um pouco, motivo de preocupações. Antes mesmo de eu vir para aqui. Tanto assim que, antes de embarcar para Moscovo, eu tive conversas com vários sectores da economia portuguesa e me permiti chamar a atenção para a necessidade que havia de conhecer bem o sistema de trabalho nesse campo, neste país novo, com o qual vínhamos estabelecer as primeiras relações.

O caso do vinho

Eu sei que nós oferecemos para aqui vinhos a preços superiores aos da concorrência de outros países. Eu conheço, até, por acaso, os preços que foram oferecidos por outros produtores e, embora não conheça a base da elaboração desses preços, a verdade é que não há dúvida nenhuma que havia diferenças muito grandes: diferenças no produto em si, diferenças no transporte desse produto. Não percebo muito bem porque é que realmente os nossos preços - desde que os vinhos fossem transportados em navios de bandeira portuguesa - vinham onerados com taxas mais elevadas, bastante mais elevadas do que se fossem transportadas em navios de outras nacionalidades... São porém, aspectos que não quero aprofundar porque não tenho conhecimento exacto deles, mas para os quais desejaria que houvesse uma compreensão e um desejo também completo de esclarecimento. No entanto, depois de muitas negociações, a verdade é que se fizeram aqui determinadas aquisições e até vultuosas aquisições de vinhos portugueses, que têm estado a vir para a União Soviética, mercê, em primeiro lugar, da necessidade que aqui têm desse produto, depois, mercê de circunstâncias e de condições que se conseguiram acordar, não em termos tão vantajosos como parece que seria de desejar, mas de alguma maneira, em circunstâncias benéficas para o conjunto da produção portuguesa, que tinha, como, aliás, acontece noutros países, grandes quantidades armazenadas e, por conseguinte, que necessitavam de ser colocadas noutros mercados, visto que o mercado nacional não podia absorver toda essa produção. Daí, talvez, uma certa dificuldade de compreensão e não sei se talvez uma certa possibilidade, que eu lamento, de especulação. Mas a verdade, também, é que temos, em relação a outros produtos, conseguido a colocação aqui de quantidades importantes que não sei se estariam já no âmbito das nossas perspectivas, mas que, de alguma maneira, representam já uma vantagem substancial neste primeiro ano de actividade. É claro que, se nos limitarmos a observar os números, verificamos que, neste momento, fizemos exportações vultuosas não tão importantes como aquelas que desejaríamos - mas já consideravelmente superiores, não quero dizer em relação às que existiam antes do 25 de Abril... mas já muito importantes e com perspectivas de melhoria para os anos seguintes.

Vinho, amêndoa e sapatos por petróleo

Dizem-me, no entanto, e observam-me que a nossa balança está desequilibrada, gravemente desequilibrada em relação a Portugal. Eu faço apenas uma observação que me parece clara e que poderia confirmar-se mediante uma simples operação aritmética: a verdade é que nós exportámos para cá. Suponho mesmo que poderemos fechar o ano com mais de um milhão e quinhentos mil contos de exportações. E não devemos esquecer que na altura do 25 de Abril os nossos negócios com a União Soviética se cifravam em oito mil contos. Passámos, portanto, de oito mil contos para um milhão e quinhentos mil... Mas a verdade é que temos um desequilíbrio, que existe um desequilíbrio contra nós. O que acontece é que, ao passo que já exportámos para a URSS, e já assinámos contratos de exportação de valores elevados em vinho, calçado, amêndoa, concentrados de tomate e assinámos também contratos de fornecimentos noutros domínios, como por exemplo na metalurgia metalo-mecânica, bastante avultados, a verdade é que nós também encontrámos aqui a possibilidade de adquirir determinados produtos, alguns dos quais eram muito difíceis de encontrar noutros mercados, devido às circunstâncias de conjuntura. Refiro-me especialmente ao petróleo. Já o ano passado adquirimos aqui uma importante partida de petróleo e este ano um novo contrato se firmou, há pouco, nesse domínio. Ora, basta nós fazermos as contas e vermos qual foi a importância elevada de petróleo que aqui adquirimos e fazermos as contas em relação ao volume, apesar de avultado. Mas que não atinge o valor dessa mercadoria essencial para o desenvolvimento mesmo da nossa economia, para encontramos aí a explicação clara dessa diferença na nossa balança comercial. Isto não é um argumento lançado apenas com O objectivo de justificar uma situação, mas de explicar, realmente, a forma como se chegou a esse saldo negativo.

Perspectivas do comércio luso-soviético

Eu devo, no entanto, dizer que, neste momento, estou convencido de que Portugal pode encontrar nos países socialistas e nomeadamente, na União Soviética, perspectivas extraordinárias de desenvolvimento muito maior para a expansão dos nossos produtos. Basta, em grande parte, que os nossos exportadores, que as nossas organizações de exportação possam ter em atenção a forma como devem apresentar-se aqui, a propôr as suas vendas. Essas vendas têm que vir muito estudadas, do ponto de vista técnico, têm que vir muito bem esclarecidas sobre todos os aspectos da própria produção, os preços têm que ter em atenção o que é uma concorrência muito forte, que, ainda por cima, é estimulada pelas circunstâncias da conjuntura internacional. Devem, por conseguinte, vir aqui com a preocupação de dominar perfeitamente os assuntos do sector de que venham tratar, pois encontrarão aqui interlocutores que estão muito bem informados e que sabem perfeitamente desenvolver todos esses aspectos do negócio que pretendemos fazer, embora eu esteja convencido, pelos contactos que aqui tenho tido, de que encontramos, também, um ambiente da maior simpatia, da maior compreensão para as nossas dificuldades e para nos ajudar, nesse domínio, a resolver aspectos tão graves e tão essenciais para o progresso da nossa gente e da nossa terra».

 

(Entrevista concedida à Agência Nóvosti
e publicada no "Diário de Notícias"
a 6 de Janeiro do corrente ano).

20170812Paz e amizade centenario logo

 

 

Voltar ao Índice de artigos