Por João de Freitas-Branco
Revista Paz e Amizade, n.º 7/8, ano II/77, pp. 32-36
De 24 para 25 de Abril de 1974 deu-se em Lisboa uma récita memorável da Traviata. Os espectadores que encheram o Coliseu, sobretudo para ouvirem a Sutherland e o Kraus, voltaram a casa antes de saberem algo do que se estava passando.
Não aconteceu exactamente o mesmo aos melómanos reunidos em Narodny Dom na quarta-feira 7 de Novembro (ou 25 de Outubro) de 1917. Os tiros ecoaram enquanto decorria outra ópera de Verdi, D. Carlos. No palco, um dos cantores-actores representou de maneira tão convincente o papel de tranquilizador que o espectáculo pôde ir até ao fim. Esse artista era Chaliapine e estava encarnando um dos mais sinistros déspotas de que reza a História: Filipe II de Espanha.
Na sua maioria, esse público ainda privilegiado terá ficado em pânico ao entender, mais tarde, que a Revolução triunfara. Se anteviu, porém, o fim da música naquele país, enganou-se redondamente. A própria Revolução ia ter muita música. Na verdade, ela marcou o princípio do acesso de milhões e milhões de oprimidos àquelas partituras de que, até então, só os opressores podiam fruir.
Incidindo apenas sobre a arte dos sons, este artigo há-de cometer a violência de separar o inseparável. A música foi parte integrante dum corpo muito maior, objecto da orientação educativa e cultural do poder revolucionário. Orientação que se reflecte em palavras simples de Lénine. Simples mas tão densas de conteúdo quanto isentas de qualquer demagogia: «Para que a arte chegue ao povo, e o povo à arte, devemos começar pela elevação do nível geral da educação e da cultura».
Tratou-se de criar condições para dar a todo aquele que o desejasse ensejo de se tornar musicalmente letrado. Tarefa ainda mais difícil do que outras das incontáveis que se impunham. Foi também Lénine quem advertiu que «os problemas culturais não podem ser resolvidos tão depressa como os políticos e militares», recomendando «o máximo de perseverança, persistência e sistematização».
Vladimir Ulyanov tinha consciência de não ser uma autoridade em matéria de apreciação artística. Compreende-se que tão bem tenha procurado colaboradores dignos das necessárias delegações de competências. Para o sector da educação pública não poderia encontrar melhor homem do que Anatol Lunatcharsky, já em 8 de Novembro nomeado comissário do povo, Até 1929, Lunatcharsky ia superintender nos assuntos culturais do Estado soviético de modo notável, resolvendo um sem-número de situações tensas e mantendo-se igual a si mesmo: «um intelectual entre bolchevistas, um bolchevista entre intelectuais», como gostava de se auto-retratar.
Cedo começou a acção de cultura musical. Brigadas artísticas móveis levaram excelentes instrumentistas e cantores a auditórios de operários, trabalhadores rurais, soldados e marinheiros. Havia também sessões para crianças. Gretchaninov deixou testemunho das condições da campanha: «nos intervalos davam-nos arenque e pão preto (horrível) para nos incutir força física. Em vez de honorários recebíamos farinha, cereais e, algumas vezes, como prémio especial, um pouco de açúcar e de cacau».
Não esqueçamos que a Rússia chegou a ter três quartas partes da sua área ocupadas por tropas inimigas do regime, a soldo do capitalismo. Causa admiração saber que, nas situações mais angustiosas, enquanto muitas fábricas tinham de suspender a actividade, o Estado continuou a prestar todo o apoio às manifestações culturais. Poucos teatros tiveram de fechar as portas.
Falando de Estado, convém acrescentar que o Partido chamou cada vez mais a si responsabilidades directivas, também no campo da cultura. Mas, no período a que este artigo se refere, aquilo que tantas vezes tem sido estigmatizado com totalitarismo cultural pode dizer-se que não existiu.
Lunatcharsky negou validade de qualquer oposição musical entre formalismo e realismo revolucionário. Relativamente a educação, manteve que era «extremamente incorrecto – e, do ponto de vista do comunismo, quase uma heresia – dizer que estamos entrando num período de vida das massas, no sentido de irmos todos actuar em massas, de que a própria colectividade, como complexo de indivíduos, se substituirá ao mestre».
Ainda mais significativo é o facto de Lénine ter afirmado que «a todo o artista assiste o direito de criar livremente, de acordo com o seu ideal, seja ele bom ou mau. É aí que está o fermento, a experimentação, o caótico». O que, evidentemente, não traduziu um liberalismo de burguês ingénuo. «Mas está claro que somos comunistas», continuou Lénine. «Não podemos cruzar os braços e permitir que o caos fermente como lhe apetecer. Temos de tentar conscientemente orientar esse desenvolvimento, moldando e determinando os resultados».
Palavras como estas foram bastantes vezes mal interpretadas por juízos menos penetrantes que o do autor de Materialismo e Empirocriticismo. Houve, por exemplo, quem mais tarde, nas colunas de Educação Artística, exigisse o banimento de tudo o que fosse «alheio ao proletariado». Inclusive a música de Bach, de Beethoven, de Liszt. O destempero do zeloso articulista foi denunciado na União Soviética, sem que tal impedisse, muito depois, que outros vigilantes o levassem às últimas consequências, designadamente na China.
As mais das vezes puros nos seus axiomas e deduções, estavam todavia pouco esclarecidos os que diziam a cultura proletária inconciliável com fosse o que fosse que viesse de trás. Mais uma vez era de Lénine a voz autenticamente realista: «O marxismo não rejeita de forma alguma as consecuções valiosas da era burguesa; pelo contrário, ele absorveu e re-elaborou tudo o que tinha valor em mais de dois mil anos de evolução de pensamento e da cultura».
Quanto a cultura proletária, Lénine observou que ela não era «invenção daqueles que se consideram seus especialistas. Tudo isso é absurdo. A cultura proletária tem de resultar do natural desenvolvimento de conhecimentos que a Humanidade acumulou sob o jugo da sociedade capitalista, da sociedade latifundiária, da sociedade burocrática».
Assimilar as tradições musicais não deve ter desagradado, na pátria de Mussorgsky, Tchaikovsky e Rimsky-Korsakov, a nenhum revolucionário minimamente sensível à arte de Euterpe. Esse património envolvia comunicabilidades melódico-rítmicas e harmónicas que serviam aos propugnadores do desenvolvimento revolucionário do cantar em coro, aos que se propunham realizar todos os potenciais da canção de massas, aos membros da Proletkult que estabeleceram oficinas-estúdios em centenas de localidades.
Por outro lado, nenhuma página de música tinha menos dificuldade em conquistar imediatamente a afeição do povo do que as dum Boris Godunov, dum Lago dos Cisnes, duma Cheherazade. Tudo parecia contribuir para que a componente musical da Revolução se vinculasse fortemente ao passado, a ponto de o processo de superação dialéctica ficar condenado a um conservantismo estético sem interesse algum para critérios de outro modo evoluídos.
Mas não. As fronteiras do desconhecido musical foram alargadas na jovem União Soviética. Entre os muitos factos comprovativos, recordem-se os contributos da Sociedade para a Música em Quartos de Tom, fundada em 1923, a construção por Theremine, três anos antes, do primeiro instrumento electrónico, tudo o que fez de Nikolai Roslavetz um pioneiro da música serial e a importantíssima acção desenvolvida durante quinze anos pela Sociedade de Música Contemporânea. Não cabe duvidar de que a Revolução estimulou grandemente a experimentação. E não só nos domínios da música como nos das outras artes.
Não foi todavia como experimentadores que se distinguiram um Prokofiev, um Chostakovitch, um Kabalevski, um Khatchaturian, os quatro compositores soviéticos mais conhecidos entre nós. Os dois primeiros são decerto os maiores expoentes, até hoje, da composição musical representativa da URSS. Prokofiev viveu muitos anos no estrangeiro, só depois do período aqui em referência voltou definitivamente para a sua terra. No entanto, já em 1923 o professor Jilayev fazia notar que «na Rússia, a influência dominante – até há pouco tempo exercida por Scriabine – parece agora desviar-se para Prokofiev».
A vertiginosa ascensão de Chostakovitch deu-se a partir de 1926. Têm sido muito comentadas as baixas de cotação que o autor da Sinfonia «Leninegrado» veio a sofrer no período jdanovista. Tudo, porém, o que tente fazer crer que ele deixou alguma vez de ser um comunista convicto, voluntariamente integrado na sociedade onde se formou e sinceramente empenhado em contribuir para o seu progresso, contradiz as informações que a tal respeito têm coligido os mais fidedignos analistas do seu caso. Sabendo-se que Prokofiev era politicamente inerte, só a Chostakovitch pode atribuir-se a acumulação das honras de compositor superlativo com a qualidade de cidadão-militante do primeiro país socialista do Mundo.
Voltemos às imediações da Revolução de Outubro. Não para desfiar os nomes de muitos outros compositores que abundantemente produziram ao longo daquela extraordinária década e meia, mas sim para salientar que, tanto no aspecto da investigação como da publicação, a musicologia soviética conheceu então uma aura com plena contrapartida nas suas brilhantes realizações. Desde a criação de institutos à edição de monografias, enciclopédias e dicionários, desde as incontáveis conferências e palestras ao influente e didáctico exercício da crítica musical (muitas vezes estimuladora de discussões fecundas), desde a pesquisa do riquíssimo folclore às publicações de muitas centenas de partituras do passado e do então presente, foi um vasto conjunto de efectivações das que mais abonam uma política de cultura.
Esses primeiros tempos não foram de isolamento do estrangeiro, apesar da hostilidade das classes dominantes dos países capitalistas. Não faltaram músicos emigrantes. A governação soviética não se obstinou em contrariá-los. Um deles foi Prokofiev, em 1918, a quem Lunatcharsky disse então: «V. é um revolucionário na música, nós somos revolucionários na vida. Devíamos trabalhar juntos. Mas se quer ir para a América, não lhe barro o caminho».
A visita de músicos estrangeiros tornou-se frequente com a melhoria da situação económica do país. Entre os regentes contaram-se Walter, Klemperer, Monteux, Scherchen; entre os compositores-maestros, Milhaud, Hindemith, Schreker, Casella; entre os pianistas, Schnabel, Fischer, Backhaus. De 1924 a 1929, o violinista Szigeti esteve onze vezes na URSS.
Estes e outros contactos influíram muito na difusão da música soviética. Por exemplo, Bruno Walter deu a conhecer ao público de Berlim, em 1927, a 1.ª Sinfonia do então muito novo Chostakovitch, franqueando-lhe a reputação internacional. Nessa fase de lançamento, até o princípio dos anos trinta, os compositores mais ouvidos no estrangeiro foram Miaskovsky, Chostakovitch, Goedicke, Ippolitov-Ivanov, Vassilenko, Knipper, Krein e Mossolov; os mais retumbantes êxitos distinguiram a referida sinfonia do segundo e A Fundição do Aço, do último.
Especialmente significativa a deslocação a Salzburg do Estúdio de Ópera do Conservatório de Leninegrado, em 1928. Os aplausos e elogios do público e crítica enalteceram também, explícita ou implicitamente, um dos dois aspectos que mais concorreram , e concorrem, para o prestígio mundial da União Soviética, no que diz respeito à música. Refiro-me à educação.
Deste ângulo, o primeiro objectivo da Revolução consistiu em obter da música tudo o que de bom ela podia proporcionar ao povo. Fez-se o que era possível, e o que parecia impossível, para que desde a aprendizagem das primeiras letras as crianças recebessem também as primeiras notas; e para que às vocações invulgares correspondesse a garantia de formação profissional completa. Dentro de relativamente pouco tempo, a URSS era um dos países mais avançados do mundo, quanto a ensino da música e sua incidência populacional.
Nos conservatórios tratou-se de acabar com as injustiças de classe. Os estudantes foram re-examinados, proporcionou-se a entrada a candidatos das classes trabalhadoras. Que a regra não consistiu na expulsão pura e simples dos alunos provenientes das classes antes favorecidas, para admitir quaisquer proletários, demonstram-no as estatísticas. Para o ano lectivo de 1922-23, os números relativos ao Conservatório de Leninegrado indicam que 63,6% dos estudantes eram de origem burguesa, 19,0% vinham do campesinato e apenas 1,9% do operariado, menos do que os 3,7% de descendentes da pequena nobreza.
A reforma dos conservatórios de Moscovo e de Leninegrado, em 1922, definiu importantes directrizes. A missão dos estabelecimentos não era de criar «estritos especialistas» mas sim artistas-músicos de larga formação educativa, capazes de corresponder às exigências da vida e adaptáveis ao trabalho prático. O nível dos conservatórios devia acompanhar «o desenvolvimento da arte musical no mundo, a evolução das ciências musicais na Europa, os sistemas e métodos músico-pedagógicos contemporâneos».
Associada à verdadeira democratização do ensino, a atenção dedicada à pedagogia conduziu a resultados sensacionais, mormente na execução instrumental. Além da eficiência dos métodos e da competência dos mestres, fez-se o possível por que estes guiassem todo o desenvolvimento académico dos discípulos mais dotados, desde o grau elementar à obtenção do último diploma.
Assim foram surgindo, em tiragens nunca vistas, executantes de assombroso virtuosismo. Assim se foram multiplicando as vitórias nos concursos internacionais, a começar pela de Lev Oborine em Varsóvia, acabava ele de sair do Conservatório de Moscovo, em 1927. A primeira vez que intérpretes soviéticos vieram competir em Portugal – Naum Chtarkman e Gleb Aksselrod –, por iniciativa de Sequeira Costa, foi para conquistarem os primeiro e segundo lugares no Concurso Viana da Mota.
Por outro lado estabeleceu-se o princípio de os melhores intérpretes, e também os mais destacados compositores, exercerem o magistério, ainda que com algum prejuízo quantitativo das suas actuações em público ou do seu trabalho criador. Mantém-se deste modo uma tradição, o termo escola aplica-se-lhe na mais desejável das acepções. Na realidade, a reputação das escolas soviéticas de piano, de violino, de violoncelo não é excedida em parte alguma do globo. No ramo da composição, porém, aquele princípio veio a favorecer bastantes excessos de tradicionalismo. Pelo menos, era esta a expressa opinião de Chostakovitch.
A seguir à Revolução houve agitações estudantis, como não podia deixar de ser. O rigor ideológico-político dos jovens aprendizes de música levou a exigências de saneamento discutíveis. Lénine arranjou tempo para se ocupar de semelhantes «erros» – assim lhes chamou – e fez ver que, «nas relações com esses professores que não pertencem à nossa classe, é preciso tomar uma atitude mais prudente».
A outra faceta em que o prestígio da União Soviética, como nação musical, se tornou máximo é a dos espectáculos. Desde logo os concertos e recitais por aqueles virtuosos de envergadura fenomenal e por orquestras, grandes coros ou conjuntos de câmara de superior qualidade. Acima de tudo, porém, e nomeadamente no período subsequente à Revolução que é escopo deste resumo, o espectáculo músico-dramático. Ou seja, a ópera.
Quanto a nível artístico das récitas, salvaguardados casos geniais, como os do fabuloso Chaliapine e do esplêndido tenor wagneriano Ivan Yerchov, o mais admirável não residiu tanto nas vozes dos cantores como na arte profundamente inovadora de encenadores como Stanislavsky, Nemirovitch-Dantchenko, Komissarievsky, Meyerhold e Tairov. As realizações de óperas como verdadeiros dramas-por-música marcaram datas na história do espectáculo lírico. Interessante resultou ainda a experiência de cometer aos próprios cantores a tarefa de encenar.
Ao mesmo tempo que o reportório instrumental se ia enriquecendo, com especial relevo no capítulo sinfónico, foram surgindo óperas, algumas das quais devem ser aqui mencionadas. Águias em Revolta, de Pachtchenko, e Os Dezembristas, de Zolotarev, por serem das melhores que se compuseram ainda perto dos acontecimentos decisivos de 1917; Chakh-Senem, de Glière, como ópera soviética não-russa, e pelo estrondoso êxito que a assinalou; e O Nariz, de Chostakovitch, por ser uma obra-prima.
Nunca será de mais insistir no que a Revolução significou para a elevação cultural das massas trabalhadoras. Stanislavsky relatou como as portas do Teatro de Arte de Moscovo «abriram exclusivamente para os pobres e fecharam, durante algum tempo, para a "inteligêntsia". Os nossos espectáculos eram gratuitos para todos aqueles que tinham obtido os bilhetes em fábricas e instituições às quais os havíamos enviado».
Os artistas viram-se defronte de espectadores «inteiramente novos» para eles, muitos dos quais, talvez a maioria, nada sabiam não só daquele teatro, «mas de qualquer teatro». Punha-se uma questão de regras elementares de comportamento. Foi preciso «ensinar esse novo espectador a estar sentado e quieto, a não falar, a chegar a horas, a não fumar, a não comer nozes em público, a não trazer refeições para o teatro...».
Valeu a pena fazê-lo. Stanislavsky encontrou nesses públicos em bruto «espectadores no melhor sentido da palavra», que não iam ao teatro «como por acidente, mas com fervor e na expectativa de algo de importante, alguma coisa que nunca tivessem experimentado na vida». O mesmo fenómeno deu-se nos espectáculos musicais, onde aquecia ao rubro o entusiasmo dos que esgotavam as salas para os primeiros encontros com Beethoven. Tchaikovsky ou Scriabine.
É principalmente pela democratização em termos do projecto socialista que, também no que respeita à música, a Revolução de Outubro significa uma viragem decisiva na história da Humanidade.