Por Dulce Rebelo
Revista Paz e Amizade, n.º 10, ano III/78, pp. 20-22
Uma delegação eclesiástica soviética deslocou-se ao nosso país, a convite da Associação Portugal-URSS, tendo permanecido entre nós cerca de dez dias no passado mês de Abril. O programa cumprido incluiu conferência de imprensa, sessões públicas, deslocações a Braga, Porto, Coimbra, Setúbal, uma celebração ecuménica em Lisboa, entrevistas a jornais, participação num programa de rádio, visita às Universidades (Braga. Coimbra, Universidade Católica de Lisboa), celebração de missa no Santuário de Fátima, encontro com o Bispo de Setúbal e conferência pública na Biblioteca Nacional em Lisboa.
A missão, representativa das várias Igrejas Cristãs existentes na URSS, era constituída pelo bispo Makário, representante da Igreja Ortodoxa Russa no Conselho Mundial das Igrejas, com sede em Genebra; pelo padre católico Staxis Lidis, da Igreja da Imaculada Conceição da Virgem Maria em Vílnius, capital da Lituânia; pelo sacerdote Sarkis Tagdjian da Igreja Arménia de Erevan, capital da Arménia, e pelo pastor Alexei Stoian, presidente do Departamento Internacional do Conselho dos Cristãos Baptistas Evangélicos de toda a Rússia.
Sem dúvida que a visita dos sacerdotes soviéticos despertou o mais vivo interesse nos órgãos de informação e no público em geral. Devido aos longos 48 anos de silêncio em que Portugal mergulhou, privado do contacto com os povos socialistas da Europa, de quem desconhecia tudo porque as informações tendenciosas, divulgadas pela imprensa de então, obscureciam completamente a realidade, não deixou de causar surpresa, admiração e intensa curiosidade a presença de quatro membros das várias Igrejas da União Soviética, interessados em falar da vida religiosa no seu país, das suas publicações dirigidas aos fiéis, da participação dos cristãos soviéticos nos comités de paz, empenhados em dialogar com as comunidades religiosas portuguesas.
Para muitos, certamente, habituados às versões, diversas na forma, mas idênticas no conteúdo, sobre a perseguição movida pelo sistema socialista à religião e àqueles que a professam, foram surpreendentes as seguintes declarações do bispo Makário na conferência de imprensa realizada no Hotel Tivoli, em Lisboa: «Durante 200 anos a Igreja Ortodoxa Russa foi impedida pelos czares de ter a sua autonomia. Só com o Poder Soviético viria a ser alcançada. Hoje vivemos uma nova ordem social e eu, como qualquer outro fiel, posso afirmar que os ortodoxos são parte integrante da vida social. A nossa Igreja durante a 2.ª Guerra Mundial colaborou activamente na defesa da pátria, e com uma contribuição de 300 milhões de rublos foram criadas uma coluna especial de blindados e uma esquadrilha de aviões, a “Alexandre Névski”, para resistir aos nazis. Os nossos mosteiros foram transformados em hospitais. Centenas de clérigos foram depois condecorados pelos serviços prestados».
Por sua vez, o padre católico Staxis Lidis, depois de ter celebrado missa em Fátima, que ele pedira expressamente para visitar, pois é grande a popularidade deste Santuário entre os católicos soviéticos, expressou claramente as suas intenções quanto à celebração do ofício religioso ao afirmar: «A missa, dedicada à paz mundial e à melhor compreensão entre os fiéis religiosos de todas as confissões, foi celebrada na Capela das Aparições, a pedido dos meus paroquianos e de minha mãe, que se encontra doente». Palavras simples, directas, mostrando o claro desejo de responder às numerosas perguntas que, nos diversos locais visitados, nos encontros havidos, não deixaram de surgir a todo o momento.
Os sacerdotes soviéticos tiveram, assim, oportunidade de pôr em relevo a liberdade religiosa existente na URSS, ao contrário do que determinada imprensa ocidental procura fazer crer. Em contrapartida, admiraram-se bastante de em Portugal, país conhecido pela sua religiosidade, não se registar grande afluência de público aos actos do culto. O padre católico lituano revelou que na sua paróquia diariamente estão presentes na missa cerca de cento e cinquenta crentes, enquanto que nos templos portugueses, onde entrou para assistir à missa em vários dias, não encontrou mais do que sete a oito pessoas, o máximo quinze, presentes nos ofícios da manhã. Mas os sacerdotes foram unânimes em expressar a sua satisfação por, em toda a parte onde chegaram, terem sido recebidos com grandes provas de amizade, terem podido contactar com representantes das diferentes comunidades religiosas, terem participado na celebração ecuménica na Igreja Lusitana da paróquia de São Paulo, onde foi lida pelo pastor Nelson Horta uma mensagem do bispo da delegação eclesiástica soviética assim como o Patriarca Pimene de Moscovo, chefe supremo da Igreja Ortodoxa Russa.
Os sacerdotes soviéticos traziam na sua bagagem um objectivo: dialogar o mais possível, relatar o funcionamento das suas igrejas no país onde há 60 anos triunfa o socialismo, falar da generosidade dos seus fiéis, que dão às suas igrejas mais do que o suficiente para elas viverem, referirem o despontar de novas vocações religiosas, ouvirem as entidades eclesiásticas mais representativas da Igreja portuguesa para desse contacto se estabelecer uma maior aproximação entre os dois países no domínio religioso. Esse contacto, porém, não se concretizou por impedimentos burocráticos.
O facto de não terem sido recebidos pela hierarquia da Igreja portuguesa foi tema central do programa «O Dito e o Feito» da Radiodifusão Portuguesa, ocorrido em 24.4.1978, comentado pelo jornalista Joaquim Letria, onde participaram os eclesiásticos soviéticos e o Dr. José Luís de Matos.
Tendo o jornalista Joaquim Letria perguntado ao bispo Makário o que pensava desta atitude da Igreja portuguesa, se a exigência das credenciais de Roma seria excesso de burocracia ou de zelo ou se, pelo contrário, a hierarquia da Igreja portuguesa estaria a actuar em consequência de quaisquer preconceitos políticos, o bispo respondeu: «Creio que algum mal-entendido está envolvido neste caso. Nós viemos aqui para derrubar o muro dos mal-entendidos entre as Igrejas da União Soviética e de Portugal. Eu próprio estive duas vezes em Roma e fui recebido pelo Papa Paulo VI. Eu próprio sou amigo de Sua Eminência o Cardeal Pamilleri em Roma e nunca me pediram credenciais, qualquer espécie de credenciais». Por outro lado, ao interrogar o Dr. José Luís de Matos, um dos acompanhantes da delegação, sobre se teria sido positiva a estadia da delegação ecuménica no nosso país, o referido jornalista obteve a seguinte resposta: «Sim, suponho ter sido extremamente positiva. Há que romper a barreira do silêncio entre estas duas igrejas... entre as igrejas da União Soviética e as igrejas existentes em Portugal... São irmãos nossos... São cristãos... São enfim sacerdotes... Ninguém, suponho, duvida de que a sua actividade principal, e única, aliás, é o sacerdócio... Eles não são de forma nenhuma políticos... Claro que o desentendimento e desunião entre as igrejas têm sido enormes há muito tempo e realmente o que eles pretendem é romper esta barreira de silêncio». Estas afirmações conjugam-se, aliás, com a declaração pública, na Biblioteca Nacional, do pastor Alexei Stoian, da Igreja Baptista, após a exposição sobre o funcionamento da sua Igreja e a vida religiosa dos crentes: «Viemos a Portugal como representantes das Igrejas e não como propagandistas. Todos os membros da delegação nasceram depois da Revolução, tendo vivido sempre nas novas condições sociais que com ela foram criadas».
A intenção primordial que presidiu a todos os encontros, contactos, visitas, conferências públicas foi, como salientou o bispo Makário, «esclarecer alguns aspectos da vida religiosa das nossas Igrejas que, num passado bem triste, estavam enfeudadas às forças políticas retrógradas, condenadas a desaparecer, e das quais se libertaram, finalmente, na prova mais grave e profunda que o nosso povo defrontou: a 2.ª Guerra Mundial».
Amantes da paz, movidos por sentimentos fraternos, os eclesiásticos soviéticos deixaram um convite ao Patriarca de Lisboa e aos mais altos dignatários da Igreja Católica e de outras Igrejas Portuguesas, para visitarem a União Soviética, a fim de poderem «observar as liberdades com que é exercido o sacerdócio em milhares de paróquias, e visitar as igrejas, seminários, conventos e lugares santos».
Uma outra faceta da realidade do vasto país foi trazida até nós, portugueses. Uma outra faceta que respeita a crença no divino, o culto dos livros santos que eleva a espiritualidade do homem, com a sua origem nos tempos mais recuados da História, tem fundas raízes no povo, quando a religião era a única forma de se aceder à cultura. A Igreja Russa, com os seus pensadores e teólogos, que procuram a divulgação da Sagrada Escritura e de revistas de conteúdo religioso, tem desenvolvido importantes acções históricas no sentido da unidade fraterna com outras religiões. Em 1948 teve lugar em Moscovo uma conferência que reuniu representantes das Igrejas Ortodoxas; nos anos 1958 e 1968 a Igreja Russa celebrou o 40.º e o 50.º aniversários do estabelecimento do Patriarcado na Rússia, transformando estes acontecimentos em assembleias representativas da ortodoxia ecuménica. Estabelecido o diálogo com a Igreja Católica Romana, começou a cooperar activamente com o Conselho Mundial das Igrejas. Uma das últimas iniciativas da Igreja Russa foi a realização em Junho de 1977 de uma Conferência Mundial de Personalidades Religiosas para uma paz estável, o desarmamento e a igualdade entre os povos.
Alguns aspectos das relações da Igreja com o Estado, da vida nos seminários e mosteiros, da evolução do sentimento religioso na União Soviética, foram revelados durante a conferência de imprensa concedida pelos sacerdotes soviéticos aos órgãos de informação portugueses. Foram muitas e variadas as perguntas. A Revista «Paz e Amizade» esteve presente e também fez perguntas. Pelo interesse das questões apresentadas e pelas respostas obtidas, não deixaremos de dar notícia pormenorizada aos nossos leitores sobre a temática abordada, num próximo número.
Conferência da delegação de eclesiásticos soviéticos, realizada na Biblioteca Nacional (Lisboa).
Da esquerda para a direita: pastor Alexei Stoian, sacerdote Sarkis Tgdjian, bispo Makário, Dr. Bruto da Costa (da Associação Portugal-URSS), e padre católico Staxis Lidis