Por Orlando da Costa, escritor
Revista Paz e Amizade n.º 30, ano 8/83, suplemento, pp. XVII-XXIX
Há precisamente 33 anos, em Maio e Junho de 1950, por iniciativa da «Associação Feminina Portuguesa para a Paz», que então comemorava o seu 15.º aniversário, realizaram-se duas importantes conferências em defesa da Paz: uma de Maria Lamas, outra de Teixeira de Pascoaes, ambos escritores, de formação diferente e de que valerá a pena recordar hoje algumas palavras dos seus respectivos depoimentos.
«... Os povos querem hoje, mais do que nunca, o engradecimento das respectivas pátria», o seu desenvolvimento e prestígio, tanto nacional como internacional. Mas, justamente porque se tornaram mais conscientes, os povos reconhecem que só na Paz - uma Paz estável e justa! - será possível resolver os seus problemas, não em teoria, mas realmente, em face das suas necessidades, dos seus direitos e das suas naturais aspirações.
Todos os conflitos de carácter internacional podem e devem ser resolvidos pacificamente, sem quebra de dignidade de parte a parte.
Posto isto, porque insistir na intensificaçõo da psicose da guerra?
Será que, apesar de derrotado o fascismo, prevalecem ainda as condições que tornaram possível a sua acção nefasta, durante vinte anos de pesadelo, cujo desfecho foi a guerra mundial?...
... Não é possível chegar a uma Paz estável, se toda a acção desenvolvida tiver em vista a guerra.
Só a renúncia categórica ao emprego da violência pode libertar as nações do medo e da desconfiança mútua, levando-as a uma cooperação pacífica e leal!...»
MARIA LAMAS
«... Em vez de se guerrearem, devem os Povos caminhar unidos para a conquista do Futuro ou da verdade, sempre futura, talvez. Mas trabalhar no sentido dela, é tudo. E, antes de tudo, trabalhemos a favor da verdadeira justiça, a económica e a intelectual. Há duas fomes, a do corpo e a da alma, a de pão de farinha, que também alimenta as aves, e a de pão espiritual, que é também o sustento dos anjos. Entre as aves e os anjos, há um parentesco indestrutível, - o das asas. E a calva dos apóstolos não os identifica a qualquer velho? Basta um traço de união entre o criador e a criatura, para serem o mesmo ser.
O pão do corpo o mesmo, para todos. O pão da alma, cada um escolherá o que for do seu gosto. O estômago é um só; mas as cabeças são inúmeras. Ainda bem para que a riqueza espiritual se manifeste, com a maior diversidade ou pitoresco. Uma só mesa, como em Sparta; e várias bibliotecas, como em Atenas.
Concorrerá a justiça económica para a paz do Mundo? Certamente. Trabalhemos a favor da iustica e da liberdade religiosa e filosófica. A justiça e a liberdade, como deusas da nossa Fé, poderão amansar ou humanizar o mais feroz dos deuses, que é o deus Marte...»
TEIXEIRA DE PASCOAES
«Sou contra todas as guerras e fui um dos muitos escritores que telegrafaram ao Congresso dos Pen Clubs em Buenos Aires, por volta de 1930, quando Morinetti, então ao serviço do fascismo, ali afirmou que «as guerras eram a higiene dos povos», o que lhe valeu ser expulso da sala, muito, muito justamente.
Os povos não fazem guerras, fazem apenas revoluções nacionais, pela justiça, pela liberdade ou pelo progresso. As guerras internacionais são os governantes que as promovem ou os poderosos através deles; e na nossa época publicitária, como se a consciência impregnasse de dúvidas, precedem-nas de intensa propaganda, para convencer os próprios governados. Admitindo mesmo que alguns deles pensem sinceramente que estão a servir os seus povos, a verdade é que são os povos, sempre, sempre as principais vítimas.»
Extracto do depoimento do escritor FERREIRA DE CASTRO, publicado no livro «VIETNAME - os escritores tomam posição»
À MARGEM DAS GUERRAS, NO CORAÇÃO DA PAZ AMEAÇADA
«À margem das guerras, no coração da paz ameaçada...». Assim gostaria de começar uma longa crónica autobiográfica - mas esta será forçosamente curta - num horizonte que é meu de já cinquenta anos, povoado de memórias de esperanças renascidas do rebentar de bombos e do assinar de armistícios chegados até mim nos noticiários dos jornais e da rádio, presenciados em centenas de imagens de arquivo. Porque de arquivo se trata: as guerras minhas contemporâneas deixaram-me à margem, ao abrigo dos tiros e do terror das frentes de combate, muito embora toda a distância e as circunstâncias que me protegeram não tenham conseguido erguer o muro, as paredes e o tecto da indiferença de tantos cidadãos de cidades indestruídas, como aquelas em que, ao longo da vida, vivi - Lourenço Marques, ao tempo da minha nascença, hoje Maputo, um centro dos países da Linha da Frente que querem justamente e a todo o custo preservar a paz na África Austral; Margão, do outro lado do Índico, na costa malabar da Índia, onde, entre cristãos e hindús e o paternalismo colonial de quatro séculos, a infância e a adolescência fizeram de mim homem, lado a lado com uma luta de independência nacional assumida até aos limites da sua vitória após uma guerra mundial que para mim teve como potência agressora da paz mais próxima o Japão; Lisboa enfim, onde chegado em 1947 assentei praça na Universidade: dispensado de ser militar de guerra, fui militante da Paz.
Militante da Paz, uma denominação tão curiosa como rigorosa. Pode-se ser militar nela Paz? Não basta denunciar a guerra?
Contagiado na adolescência pelas duras virtudes da militância de um homem, que não tendo sido escritor - Gandhi - foi proclamador e soldado da «não violência», fui ao mesmo tempo tocado pela grandeza poética de Tagore, esse também militante da educação, cujo rosto sereno de longos cabelos e barbas transmitiu-me uma espécie de passaporte de cidadania universal para outro homem cuja serenidade inteligente se exprimia também por palavras decantadas porém de um rosto rapado: Romain Rolland. Nenhum deles, tive a sorte de aperceber-me, era velho. Eram apenas homens de idade, de uma idade capaz de rejuvenescer velhos e dar mais juventude aos jovens.
O respeito pela cultura e o entendimento da história - que nada tiveram de precoce, apenas e felizmente na idade útil em que decidi escrever - iniciaram-me no sentido correcto, coerente e moral, do que significa a aliança criadora do «pensamento e da acção»: «... o dever de pôr a nossa arte ou a nossa ciência ao serviço da justiça e da vida», como, a propósito de Romain Rolland, diria o grande cientista e pensador, também grande defensor militante da Paz, que foi Paul Langevin. A paz do artista criador, o paz que lhe é necessária para escrever ou pintar, não pode existir em contradição com a paz ameaçada entre os homens do mundo. Uma lição - outro contágio? - que aprendi aos vinte anos e que nunca mais deixei de reescrever, porque se é que até hoje vivi à margem das guerras, sei que vivo ainda, como os meus leitores também, no coração da paz ameaçada...
Vinte anos depois de proferidos, por ocasião do 70.º Aniversário de Romain Rolland, em 1936, chegaram até mim as palavras de Langevin, muito mais anunciadoras que denunciadoras: «Como Rolland, e em grande porte graças a si, compreendemos que a paz não pode resultar senão da criação de uma solidariedade internacional tornada mais estreita e mais necessária pela aproximação das nações que realizou o progresso técnico; a paz perturbada num ponto qualquer do mundo é hoje uma ameaça de guerra para o mundo inteiro. A paz tornou-se indivisível. O perigo é demasiado grande para que tenhamos tempo de fazer apelo à vontade individual dos homens. As nações devem afirmar o seu desejo de paz subscrevendo compromissos colectivos abertos a todos. A sua aceitação é hoje a verdadeira prova pela qual se reconhece a vontade de paz».
Tão actuais como então, estas palavras são uma calorosa proposta que nenhum intelectual de gabinete nem nenhum escritor pode ignorar. Relembrar junto dos seus leitores e juntamente com eles levá-las o praticar, não tanto porque é obrigado, mas sobretudo porque se sente obrigado: tão grande é a esperança a que temos acesso como é enorme a gravidade da situação que sufoca, fazendo uma e outra parte da nossa vida de hoje, privada e colectiva.
«Paix d'abord», fórmula que inspirou, décadas atrás, a Henri Barbusse e a Romain Rolland «a iniciativa do movimento de Amsterdão, que se tornou o movimento mundial contra a guerra e o fascismo, formas conjugadas de todas as violências e de todos os retrocessos... Primeiro a paz, depois o desarmamento e a reparação das injustiças de que o mundo sofre. Não se discute com armas na mesa». Verdade irrecusável, tornada hoje comum, cabe aos escritores como produtores responsáveis de cultura, transformá-la numa esperança alargada, meta certa de uma tarefa a cumprir. O desanuviamento entre os governantes dos países é desejável e é possível. A cultura o exige, a cultura, a nossa arma única, torna possível. A paz é um combate comum.
«Paz de pão, de alegria e de fraternidade
é a única inteira, é a única livre
e só ela merece o combate comum», escreveu o poeta Armindo Rodrigues no seu livro a Paz Inteira, onde sobre a luta pela Paz acrescentava:
«...De paz é a luta, minha paz, que em paz procuras, contra esta paz impiedosa e impenitente.»
Em 1959, presente a um Congresso do Conselho Mundial da Paz, realizado em Estocolmo, para além de tudo o mais de exaltante e encorajador que experimentei, tive a oportunidade de conhecer pessoalmente escritores de renome que levavam, juntamente com as suas mensagens, a sua adesão física ao projecto de Paz mundial, em debate naquela assembleia de ressonância internacional. Ilya Ehremburg, Anna Seghers, Cholokov, Boris Polevoi, o indiano Mulk Raj Anand, o turco Nazim Hikmet, que do tema da paz fizeram sua inspiração e mensagem artística para todos os seus leitores.
Da denúncia da guerra e da opressão à proposta de amor, justiça, paz e fraternidade, também em Portugal, páginas e páginas foram escritas, censuradas ou publicadas, dispersas ou em livros, demonstrando com raiva ou sem ela, mas sempre com um sopro fecundo de esperança a natural intimidade vocacional entre a criação artística e o desejo enraizado da paz. Nesta era de informática e nuclear, uma Paz cada dia mais esclarecida, mas cada dia mais necessária. Tão necessária quanto tenho como certo que, afastada a ameaça constante da guerra, anuladas as condições que geram as guerras sustentadas por interesses económicos como solução de problemas entre nações, a Paz de que falo não será mais para ninguém apenas o oposto da guerra, para assumir a sua própria identidade, face única da vida, na diversidade e riqueza plena das culturas que os escritores e os povos do mundo não podem cessar de criar.
«Esperança certa no caminho dos homens
Paz chama-lhe o povo
Esperança que sempre e de novo
Nasce e renova entre nós
A límpida face do canto comum.»