Por J. Seabra-Dinis
Revista Paz e Amizade n.º 13, ano 4.º/79, pp. I-XX (Suplemento)
Da segunda vez que visitei a Sibéria parti de Moscovo (aeroporto de Vnukovo) à uma da madrugada na segunda quinzena de Junho.
Vou incorporado num agrupamento multinacional de uma dezena de pessoas, de ambos os sexos, incluindo os intérpretes: uma jovem inglesa, uma canadiana, uma jornalista grega, um jornalista italiano, um escritor de Malta, três soviéticos, eu e meu filho Tito, que muito me auxiliou na colheita de dados informativos aqui apresentados.
Connosco segue também um alacre e buliçoso grupo de raparigas e rapazes soviéticos, estudantes que vão voluntariamente passar as férias a trabalhar na construção do BAM. O BAM é a grande epopeia siberiana do século. O nome corresponde às iniciais de Baikal Amur Maguistral (via férrea entre o lago Baikal e o rio Amur). É a duplicação do Transiberiano desde o noroeste deste lago até ao Extremo Oriente: 3200 km. Presentemente, já estão colocados 1100 km de carris, ou seja, cerca de um terço do comprimento total.
Toda a bacia do BAM, terra ignota durante séculos, inabitada ou quase, está a transformar-se numa longa faixa de cerca de 300 a 400 km de cada lado da via férrea, habitada, cultivada e industrializada, para o melhor aproveitamento das imensas riquezas naturais da Sibéria Oriental e de todo o Extremo Oriente.
[O BAM servirá de eixo à criação de mais complexos industriais e agrícolas:
1. - O primeiro será o de Verkhne-Lensk, utilizando os ricos recursos florestais e hidroeléctricos das bacias do Lena e do Kirenga, bem como os jazigos locais de petróleo, gás e minerais pollmetálicos.
2 - O segundo complexo é o de Sevem-Baikálski, que se servirá das riquezas do norte da República da Buriátia; o jazigo de amianto crisótilo de Molodejny, o de mollbdénio de Orekitan, etc.
3. - Outro complexo industrial será o de Odokan (jazigos de cobre e outros minerais).
4, - Na parte central do BAM será criado o Iújno-lakútia (Iakútia do sul) para vários ramos Industriais.
5. - Mais para leste, o complexo de Tinda (indústria de construção, tratamento de metais), Importante nó ferroviário, etc., etc.]
Ao mesmo tempo multiplicar-se-ão os laços económicos da URSS com os países estrangeiros, em primeiro lugar os mais próximos da costa do Pacífico.
Participar na construção do BAM constitui para a juventude soviética um título de honra e de glória, tal como em muitos outros grandes empreendimentos em toda a Sibéria e alhures. Os jovens oferecem-se para trabalhar naquelas distantes e difíceis paragens (e são bem rigorosas as provas de selecção a que eles previamente se submetem, dadas as duras condições climáticas e outras que terão de suportar), imbuídos por uma espécie de força irresistível de romantismo, embora o Estado não deixe de lhes conceder retribuição superior à dos outros trabalhadores soviéticos de grau semelhante.
A viagem aérea até lrkutsk, perto do lago Baikal, decorreu normalmente. Duas horas e meia depois da partida (3 112 h. de Moscovo ou 5 112 horas locais) fizemos a primeira aterragem intermediária em Tcheliabinsk, ao longo do Transiberiano.
Já amanhece. O Sol que meia hora antes, em pleno voo, começava a rosear as nuvens sobretudo à nossa esquerda, em contraste com as nuvens da direita, ainda negras, brilha agora abertamente e já aquece: 20 graus no aeroporto local.
Uma hora mais tarde seguimos viagem para Omsk, onde aterrámos às 7 e 40 (hora de Moscovo). O tempo aqui é de trovoada, abafado. Mal chegámos, caiu uma chuvada durante 4 ou 5 minutos e arrefeceu. Às oito e meia, descolámos para a última etapa, Irkutsk, onde chegámos às 9 %, hora de Moscovo (ou 14 1/ 2 hora local).
A temperatura exterior em lrkutsk era de 23 graus, relativamente quente, mas fazia uma aragem muito agradável.
Depois de instalados no hotel, almoçámos (Hotel Angará) e fomos recebidos na Casa da Amizade pelos seus dirigentes, que começaram por nos oferecer um filme documentário sobre uma caçada ao sóbol, termo russo que deu entre nós a palavra zibelina (a tão afamada marta zibelina de que se fazem os caríssimos casacos de peles, do tipo dos visons, tão apetecidos no seio da alta-roda).
O sóbol, ou zibelina, é um mamífero carnívoro, do género Mustela, família dos Mustelídeos, a que pertencem espécies várias como a marta, a marta zibelina, a fuinha e a doninha. É um pequeno animal alongado que pode atingir até 40 ou 50 em de comprimento, do focinho à raiz da cauda, a qual por si só pode ir a 30 em ou mais. As patas, curtas e vigorosas, podem dar-lhe, juntamente com o tronco, uma altura de 25 cm.
Vimo-lo a saltar de ramo para ramo, de árvore para árvore, no interior da floresta coberta de neve, em desesperada tentativa de se esgueirar à perseguição dos caçadores e sobretudo dos cães que cercam o pobre animal, empoleirado lá em cima sobre um galho. É curioso que, quando o tronco da árvore é delgado, simples arbusto, os cães chegam a procurar abaná-lo com os dentes para precipitar a queda do sóbol.
Quando na manhã seguinte fomos conhecer o lago Baikal, detivemo-nos no caminho para visitar um sovkhoze consagrado à criação artificial destes animais. Logo à entrada, convidaram-nos a vestir cada um a sua bata branca e a desinfectar os sapatos sobre um tapete esterilizante.
São criadas aqui cerca de 8000 pequenas martas zibelinas, muito mais pequenas que as selvagens. Estas últimas, que andam em liberdade na floresta, são bem mais corpulentas e chegam a viver 12 ou 15 anos, se os cães e os caçadores as não abaterem antes. Pelo contrário, as criadas neste sovkhoze, o Zverossovkhoze bol’cherzenskii, nunca atingem tais idades, pois são, sacrificadas, em média, ao fim do primeiro ano de vida (entre os 8 e os 18 meses), que é a idade em que a pele do animal oferece as melhores condições de utilização industrial e comercial. Por ano, destas 8000 são mortas à volta da quarta parte para obter sobretudo o pelame e a carne.
Cada sóbol vive numa gaiola de arame, relativamente ampla, isolada, cerca de um metro acima do solo, contendo no interior uma pequena toca, onde o animal se pode refugiar.
Há-os pretos, brancos prateados e acinzentados. Os pretos valem à roda de 36 rublos (valor actual do rublo: 65$00). Os outros são mais caros e alcançam os 60 rublos.
Quando nos aproximamos das gaiolas, saem da toca interior, avançando o focinho, curiosos mas tímidos, chegando a soltar frequentes guinchos a cada passo e mostrando-se com frequência agressivos.
Estes pequenos animais são aqui cuidadosamente tratados, tanto do ponto de vista higiénico como nutritivo, recebendo uma alimentação suplementar de 60%.
São martas zibelinas como estas que abastecem grande parte dos mercados internacionais.
O veterinário, que ganha 200 rublos por mês, acompanhou-nos solícito na visita e trouxe-nos um dos mais novos, com pouco mais de um mês de idade, todo branco, para lhe podermos pegar sem perigo com as mãos e examinar de perto.
Todos os que ali trabalham recebem uma bonificação salarial de 20 % por trabalharem longe da cidade. Além disso, cada trabalhador recebe por ano um prémio suplementar de 1000 rublos, variável conforme os resultados laborais obtidos.
O LAGO BAIKAL
Dois fotógrafos da RDA que percorreram este lago em 1965 publicaram uma pequena e muito elegante brochura, profusamente ilustrada a cores, que começa assim, no estilo do "IF" de Kipling:
"- Se não sois indiferente às belezas da natureza...
Se sentis a nostalgia do perfume embriagante da taigá...
Se em vós ainda vive o caçador e o pescador...
Se quereis fortalecer o corpo e rejuvenescer a alma...
Ide de avião, de comboio, de automóvel ou mesmo a pé
Ao mais belo,
Ao mais profundo,
Ao mais transparente,
Ao mais antigo dos lagos do mundo - ao lago Baikal".
Não se tome por puramente fantasista uma tal legenda!
Todo o visitante, com mínima parcela de sensibilidade, sente de facto que ela é real, pois seus olhos e coração logo a confirmam.
Indiscutível o sortilégio que emana deste lago, mesmo para lá das riquezas objectivas que encerra. As águas transparentes do Baikal, dum azul cristalino, combinam a sua cor, em cambiantes irisados, com os verdes da taigá e as mutações inesperadas dos montes circundantes, os acentos cínzeos do céu e os raios ruborescentes do sol numa harmoniosa orquestração de luminosidades, a cada passo metamorfoseada. Inigualável encantamento!
Com justa razão chamam ao Baikal "a pérola da Sibéria" e também "a Meca do século XX". Com efeito, ali acorrem periodicamente milhares de visitantes da mais variada proveniência, não apenas de todos os recantos da União Soviética, mas de muitos outros países do mundo.
Trata-se na verdade do mais profundo dos lagos do mundo: 1741 metros. Ocupa uma área de cerca de 30000 km', mais de um terço de Portugal. Orientado para nordeste, tem um comprimento de 636 km, maior que o do nosso' país, e uma largura variável que vai até os 79 km. A linha de costa estende-se por mais de 2000 km.
Diferentemente dos outros lagos, que, em geral, não existem para lá de 20 a 30 mil anos durante os quais se vão obstruindo com as lamas e detritos trazidos pelos rios tributários e pela progressiva invasão da vegetação circundante, o Baikal já existe há cerca de 25 milhões de anos, de acordo com os cientistas. Segundo estes, o homo sapiens apareceu aqui muito antes que na Europa.
Ao lago Baikal vão oferecer as suas águas cerca de 330 rios e regatos, embora dele saia apenas um, o rio Angará, afluente do lenissei. A este propósito ainda perdura uma velha e deliciosa lenda, segundo a qual a jovem e impetuosa torrente fluvial chamada Angará teria abandonado o seu pai Baikal por amor do formoso lenissei. O pai, furioso, arremessou-lhe, para tentar detê-la, um pedregulho, hoje conhecido por "a Pedra do Bruxo", que podemos ver logo à saída do Angará.
Do seu interior emergem 22 ilhas e uma dúzia de minúsculos ilhéus. Nas suas águas doces (é o maior reservatório de água doce do mundo) e nas suas margens vivem mais de 1800 espécies animais e vegetais, muitas das quais (à volta de 800) são únicas. Entre estas destacamos alguns peixes: o ómul, da família dos Salmonídeos, a pequena golomianka que tem as particularidades de ser um vivíparo que habita as profundidades do lago e fornece 30 % de gordura com virtudes terapêuticas, a umbla ("kháriuz"), espécie de salmão negro e branco, o tímalo ("sig") e o "taiméni", também Salmonídeos.
À beira do Baikal, na aldeia de Listvianka, ergue-se o moderno Instituto de Limnologia (do Gr. límne, lago), que também visitámos.
Logo à entrada, o busto do fundador, V. A. Obrútchel (1836-1956). Recebeu-nos a actual directora, Galkina Valentina, que muito amavelmente nos guiou na visita e nos fez uma clara descrição da história do Instituto, à medida que íamos percorrendo o seu mostruário.
Sobressai um volumoso modelo do lago, feito de vidro transparente e plasticizado, que permite fazer-se uma ideia muito correcta e visualizada da sua configuração geral e irregularidades do seu fundo e respectivas margens.
Perto, o modelo dum navio de investigação científica submarina, o Pisces, que foi adquirido no Canadá e está já prestando bons serviços no lago (estudo da estrutura tectónica do fundo, etc.).
Ao redor das paredes, inúmeros exemplares embalsamados ou modelados da fauna e flora locais, bem como exemplares de mineralogia, de que recordamos, um pouco ao acaso, peças de baikalite, grafite, lazurite, mármores de diversas cores (feéricos os mármores do Monte "Tcholtov", Monte do Diabo), pedaços de cristal, etc., variados peixes, crustáceos, platelmintas, nemátodos, aves, animais da floresta, o sóbol local (Mustela Siberia), etc..
A temperatura da água é sempre baixa, fria, não ultrapassando em regra os 12 graus positivos senão nas camadas mais delgadas das lagunas. No momento da nossa visita acusava 5 graus. É uma água bastante pura e de tal modo transparente que se podem ver os peixes, à vista desarmada, a várias dezenas de metros de profundidade.
O clima das margens do Baikal também é naturalmente muito influenciado por este, mantendo-se mais ameno que nas outras regiões (menos quente no Verão, menos frio no Inverno) e com mais numerosos dias de sol, o que a este propósito o aproxima do mar Negro.
É evidente que para o Baikal poder conservar a pureza e transparência das suas águas, elas têm de se manter ao abrigo de toda a sorte de poluição. E na verdade os organismos dirigentes do país tomaram a peito esse cuidado e todas as empresas potencialmente poluidoras, como os complexos industriais de celulose e papel que existem à beira do lago, são obrigadas a dispor de instalações próprias para depurar as águas que utilizam e que só depois de terem sofrido um rigoroso tratamento biológico e químico capaz de lhes restituir a pureza e a potabilidade (os visitantes com frequência são convidados a beber estas águas já depuradas) poderão ser lançadas de novo ao lago.
De resto, os próprios habitantes das zonas ribeirinhas têm grandes atenções com o seu Baikal para onde não deixam arremessar qualquer espécie de lixo diz-se um tanto hiperbolicamente que nem que seja um simples palito de fósforo. Todavia, o Conselho Científico da Academia de Ciências de Novossibirsk ainda considera hoje que este lago continua a correr riscos de poluição, que só desaparecerão por completo quando as águas residuais, mesmo depuradas, não puderem ser mais lançadas nele.
Informam-me que esta época (fim da Primavera, começo do Verão) é a mais bela do ano. E não apenas porque os dias de sol claro e de céu límpido são então mais frequentes, mas ainda porque as águas do lago, frescas e calmas [Nem sempre, porém, são calmas e suaves as águas do Baikal. Por vezes há verdadeiras tempestades, especialmente quando sopram com fúria certos ventos (o "sarma", o "bargúzine", o "angará") que. provocando forte e perigosa ondulação, tornam então o lago agreste e inabordável mesmo para os pescadores experientes.], facilitam tanto a actividade dos pescadores como os passeios de barco dos visitantes, e permitem fruir melhor a beleza verdejante das suas margens. Além da rica variedade de peixes, dos cisnes, dos patos, das focas.
Em redor do lago, toda a natureza vive e pulsa com exuberância. Na esmeraldina taigá, entre mais aparecem, activos, os linces e as raposas, os javalis e os veados (e destes uma variedade siberiana, sem cornos, "kabargá"), a zibelina e o esquilo, a perdiz e o tetrax, o alce, o urso pardo e o almiscareiro. Vivem livremente e em segurança numa extensíssima coutada de duzentos e quarenta e oito mil hectares.
O Outono afirmam-me ser uma estação muito aprazível, de céu puro e florestas douradas, mas demasiado curta, pois o Inverno aparece já em Outubro com a sua arrastada sonolência de neves e gelos, de que não desperta senão Primavera dentro, quando em Maio os gelos do lago se quebram e derretem, enquanto nos céus e no bosque as andorinhas e as cotovias recomeçam a cantar.
Nos últimos anos, à volta do Baikal têm-se desenvolvido e continuam a desenvolver-se parques florestais, reservas de caça, zonas de repouso para os trabalhadores, centros de turismo e estações termais e de cura. Notáveis são já, por exemplo, a estação balnear de Arachan, o sanatório "Baikal", o complexo termal e turístico das aldeias de Ustvianka e de Nikolai.
Há por ali mais de três dezenas de fontes de águas terapêuticas, muitas delas quentes (a atestar a actividade tectónica da região, de elevada sismicidade), e todo um vasto número de centros de campismo, de hotéis, motéis e restaurantes, uns completamente construídos, outros ainda apenas em começo ou já em conclusão.
Em toda a volta do lago, uma rodovia, ainda incompleta. Na água, uma frota de barcos de recreio e outra de pesca.
Almoçámos num moderno e cómodo restaurante, de construção muito recente, situado no cimo de uma escadaria de pedra sobre um outeiro sobranceiro ao lago, donde se colhe uma pitoresca perspectiva do Baikal.
Foi nosso anfitrião um Professor do Instituto de Agronomia de Irkutsk, M. Kamenetsky, simultaneamente presidente dos deputados de Irkutsk, vice-presidente da Associação de Amizade local e membro do Comité Regional da Paz. Jovem e animado ancião, dos seus sessenta e tantos, cabeça toda branca, picnomorfo, de faces rosadas e risonhas, optimista e brincalhão, coleccionador de bonecas típicas de todos os países do mundo. Escusado dizer que não tinha ainda bonecas portuguesas, que com muito gosto fiquei de lhe enviar quando regressasse a Portugal.
Foi, aliás, este mesmo simpático professor de agronomia que sempre nos acompanhou não só nas visitas ao lago e ao sovkhoze das zibelinas, mas também à própria cidade de Irkutsk (museu histórico e etnológico, monumentos, etc.). Sintónico, alegre, sempre bem disposto, a cada momento nos fazia participar a todos no calor comum de fraternidade, amizade e harmonia. Logo na primeira excursão, ao lago Baikal, depois de nos descrever pelo microfone do autocarro os aspectos principais de tudo aquilo que íamos visitando, calou-se por momentos para logo a seguir exclamar:
- Apetece-me cantar! E se cantássemos todos? ...
E quis insistentemente que todos o fizéssemos, em coro ou a solo.
IRKUTSK
A cidade de Irkutsk, que visitámos um tanto a correr, fica situada a cerca de 70 km a oeste da extremidade inferior do lago Baikal, junto do rio Angará, no local onde vem desaguar neste o rio Irkut.
A povoação primitiva com este nome foi fundada em 1652 por um destacamento de cossacos, que vieram estabelecer aqui, na margem direita do Angará, o seu aquartelamento de Inverno. De lá partiram as primeiras caravanas dos mercadores russos para a China e a Mongólia, bem como os "bandeirantes" russos que desbravaram a Sibéria, alguns dos quais se aventuraram até ao Alasca, que então pertencia à Rússia, para aí fundarem as primeiras povoações.
A situação geográfica (perto do lago Baikal e no caminho da China e da Mongólia), bem como as riquezas das florestas e do subsolo aceleraram o desenvolvimento desta aldeia que em 1686 passou a cidade, transformando-se num centro administrativo e comercial cada vez mais adiantado e, depois, em residência do Governador de toda a Sibéria Oriental.
A construção no fim do século passado do caminho de ferro transiberiano foi o grande catalisador do enorme progresso da cidade de Irkutsk em todos os sectores da sua vida, tanto do lado material e económico como social e cultural. Também os governantes tsaristas, embora involuntariamente, muito contribuíram para o desenvolvimento desta cidade quando faziam desterrar para Irkutsk muitos dos seus inimigos políticos, em regra pessoas cultas, literatos, cientistas, etc. que aqui continuavam, sempre que podiam, os seus dotes e actividades, concorrendo assim para enriquecer o nível de vida local nos seus múltiplos aspectos. Para Irkutsk vieram exilados, por exemplo, muitos dezembristas, enciclopedistas, democratas revolucionários e até, desde o último decénio do século XIX, marxistas e bolcheviques. Recordamos apenas os nomes de A. N. Radíchtchev (1749-7802), filósofo e escritor, considerado o fundador da literatura revolucionária russa; N. G. Tchernychévski (1828-18S9), conhecido democrata revolucionário, filósofo e crítico literário; e mais perto de nós os nomes de N. E. Fedosseev, S. M. Kírov, M. V. Frunze, V. V. Kúibychev, I. V. Stáline, entre outros.
Em 17 de Novembro de 1917, foi instaurado em Irkutsk o poder soviético, que teve de travar enérgica luta, durante a guerra civil, contra as forças de Koltchak e do corpo de marinheiros checoslovacos, e só em Março de 1920 conseguiu vencer definitivamente o inimigo.
Desde então não mais cessou o desenvolvimento de Irkutsk que se alargou muito e foi ocupar também a margem esquerda do Angará. Hoje é uma grande cidade, de mais de meio milhão de habitantes, que possui uma poderosa estação hidroeléctrica sobre o Angará, com uma potência de 660 mil kw, que está na base duma fortíssima actividade industrial e técnica. Ao mesmo tempo, Irkutsk tornou-se num admirável centro científico e cultural, extraordinariamente dinâmico, que irradia sem cessar a sua acção até bem longe, em primeiro lugar por toda a Sibéria.
Em 1918, foi fundada aqui a primeira universidade da Sibéria. Actualmente, além da filial da secção siberiana da Academia de Ciências da URSS, existem em Irkutsk sete institutos superiores, três dezenas de escolas técnicas e estabelecimentos de ensino especializados (frequentados por mais de 100000 estudantes), quatro teatros (o Teatro Dramático, a Comédia Musical, o Jovem Espectador e o Teatro de Fantoches), uma filarmónica com salão de concertos, cinemas, um circo, museus, bibliotecas, livrarias, casas de cultura, jornais, imprensa, parques de repouso e cultura, centros desportivos e recreativos, etc.
Dispersos pela cidade, encontram-se a cada passo estátuas e monumentos históricos e arquitectónicos, entre os quais destacamos a Casa Branca, onde hoje está instalada a Biblioteca da Universidade Estatal "Jdánov", a Igreja da Salvação e a Catedral da Aparição em estilo russo antigo, monumentos e estátuas a Lénine, aos Heróis da luta pelo poder soviético, a Górki numa pequenina praça ajardinada junto dum cruzamento, as casas conservadas onde viveram os dezembristas S. G. Volkónski e S. P. Trubetskoi (hoje transformadas em museu), a casa onde em 1890 viveu apenas durante uma semana o escritor Tchékhov a caminho da Sakhalina, a casa onde habitou Kírov em 1909, etc.
Por todo o lado se encontra um sem número de construções modernas. No entanto, em certas ruas, consideradas zonas-museus, particularmente no centro da cidade, vêem-se, conservados com esmero, muitos prédios antigos, construídos de madeira talhada, que são preciosos exemplares arquitectónicos de épocas passadas.
Infelizmente, não tivemos ocasião, como já dissemos, de percorrer a cidade com mais vagares. Os rigores no cumprimento do horário programático, demasiado apertado, não consentiram que lhe dedicássemos a atenção mais circunstanciada que, sem dúvida alguma, Irkutsk nos pareceu merecer.
Apenas mais uma nótula desgarrada que por instantes nos fez reflectir um pouco nos interesses românticos e culturais desta gente: o condutor do táxi, que utilizámos, trazia exposto no interior do veículo uma fotografia do poeta Essénine, tal como entre nós é frequente ver-se, em casos semelhantes, a foto dalguma vampe cinematográfica... Em resposta à nossa curiosidade, foi-nos dito que Essénine continua a ser aqui um ídolo muito popular.
BRATSK
A primeira vez que fixei, para não mais esquecer, a palavra "Bratsk" foi já há cerca de uma dezena de anos, ao ler um poema de Evtuchenko, longo, multiplicado, mas sempre vibrante, sem dúvida das suas mais impressionantes criações, inspirado pela Estação Hidroeléctrica de Bratsk, que ele compara às pirâmides do Egipto, publicado em russo em 1966 e logo no ano seguinte aparecido na Grã-Bretanha em tradução inglesa, para a qual o autor escreveu um pequeno prefácio que começa assim: "No mundo, duas filosofias estão agora em luta: a filosofia da descrença, do pessimismo, e a filosofia da crença no futuro luminoso da humanidade. Eu vi a incarnação viva desta crença em muita gente maravilhosa que encontrei em Bratsk Na nova Sibéria de hoje, terra que no passado foi uma horrível prisão com muitos milhares, de quilómetros, mas que é hoje fonte de luz para a nossa pátria, vi eu o símbolo desta fé. E o próprio nome, que nos é tão família. desta estação hidroeléctrica. "Bratsk" ["Brat" em russo significa "irmão".], com o sentido de "''Fraternidade'' não será na verdade um símbolo?".
Mal imaginaria eu então que um dia mais tarde também aqui haveria de vir.
Numa bem aprazível manhã de sol partimos de Irkutsk para Bratsk, quase a 500 km a noroeste, nas asas dum pequeno avião lakovlev-40, de apenas 24 lugares. Chegámos por volta do meio-dia, uma hora e dez minutos mais tarde.
Fizemos quase toda a viagem a mais que 3000 metros de altitude, através dum céu límpido, o que nos permitiu ver sem a sombra da mais pequena nuvem, como para que pudéssemos avistar lá em baixo, a olho nu, a mesma paisagem a que já nos habituáramos: extensões sem fim de floresta quase sempre salpicada de inúmeros charcos e lagos. Pouco antes de aterrar sobrevoámos a pequena altura a barragem e o rio que a enche, o Angará, que aqui se alarga enormemente, transformando-se no mar de Bratsk, com as suas praias próprias que os habitantes da região não se coíbem de, a seu tempo (e este é bem curto), saborear... O perímetro deste mar é de 5000 km, ou seja, a distância Bratsk-Moscovo. A largura entre as duas margens vai aos 5 km, e a da própria barragem chega ao quilómetro e meio.
As ondas elevam-se por vezes até aos 6 metros de altura. Mas de Novembro a Maio o mar permanece gelado, sem que, no entanto, nesta estação hidroeléctrica se altere em regra a produção média de energia, porque no Verão são tomadas medidas para acumular a reserva de água necessária.
A extensão da represa é de tal ordem grande que, soubemo-lo depois, até o clima local se modificou, adoçando de bastantes graus os frios do longo Inverno. Assim, em 1956 a temperatura mínima no Inverno desceu a menos de 58 graus e em 1960 já não passou os 42 negativos. E no Verão a temperatura máxima não vai muito além dos 28 positivos.
Foi apenas há 23 anos que se iniciou a construção desta barragem do Angará, o rio que em toda a Sibéria oferece, pela sua impetuosidade, mais frequentes condições para o fornecimento de energia. Logo à saída do Baika deu origem à estação hidroeléctrica de Irkutsk, enquanto ao norte de Bratsk se encont ra ou tra em termo de construção, a de Ust-ilimsk, que também percorremos.
Em 1954, chegaram aqui os primeiros milhares dos novos construtores, recrutados na sua maioria entre voluntários do Komsomol e do PC. Tiveram de se instalar no amago da floresta, infestada de mosquitos, o que os obrigou a proteger com redes de mosquiteiros as barracas e tendas de campanha onde viviam. Logo se iniciou uma luta sem tréguas contra o mosquito que acabou por desaparecer por completo daquelas paragens.
No ano seguinte, 1955, este aldeamento estava tão desenvolvido que os seus construtores decidiram passar a chamar-lhe cidade de Bratsk [Os siberianos autóctones pertencem na sua maioria ao povo buriat. Quase à maneira de carinhosa metonomásia, chamam-lhe o povo brat, isto é, povo irmão. Daí a palavra Bratsk.]. Desde então não cessou de crescer e hoje conta já 240 000 habitantes, de mais de 60 nacionalidades soviéticas, número que se prevê ir aumentar até 280 000 em 1980.
A região alonga-se numa extensão de 90km, por onde se dispersam oito aldeias.
Iniciada, como já dissemos, em 1955 a construção da barragem, já funcionavam em 1961 os primeiros geradores e em 1967 estava terminada, com as suas 18 turbinas em normal funcionamento, com mais de 400 000 kw (a de Irkutsk produz 660 000) [A corrente eléctrica sai baratíssima, a menos de 0.1 de kopek por um kw/h. Terminada em 1967, a estação de Bratsk já produziu vários milhões de kw/h. pagou já todo o investimento de que necessitou e rendeu mesmo mais oito vezes.]. Nela se ocupam hoje perto de 400 trabalhadores.
Demorámos de autocarro cerca de três quartos de hora do aeroporto de Bratsk, pelo meio da floresta, até ao centro da cidade, a majestosa Avenida da Paz ("Pyospekt Mira"), bordada de ambos os lados de amplos e modernos edifícios, habitacionais, comerciais, públicos. Ficámos instalados junto dela, no quinto andar do elegante Hotel TAIGÁ, um dos principais da cidade, no cimo do qual se destaca um relógio luminoso com indicação das horas, do dia da semana, do mês, do ano e da temperatura. No momento da nossa chegada, por volta das 2 da tarde, o termómetro marcava 19 graus positivos.
A janela do nosso quarto dá para uma larga praça, cimentada, no centro da qual se vê um lago ornamental rectangular, onde brincam as crianças. À esquerda, ergue-se o teatro ROSSÍA, encimado por uma inscrição a letras vermelhas, bem visíveis: "SOTSIALIZM I MIR - NERAZDELÍMY!" (Socialismo e paz são indivisíveis!").
Bratsk é considerada como um posto avançado ("forpost") para a descoberta e desenvolvimento da Sibéria. Cidade socialista moderna com todos os requisitos que isso implica e que concentra as suas actividades, com particular atenção, à roda da sua estação hidroeléctrica, nas indústrias transformadoras de madeiras, fábricas de fibra viscosa, fábrica de alumínio, que é o maior consumidor da electricidade da central, etc. Ao todo, desenvolvem-se ali 22 ramos industriais.
Bratsk é a sede da direcção do BAM, embora este não chegue aqui directamente, mas apenas através duma ramificação do Transiberiano.
Percorremos a principal fábrica de produção de celulose, que fornece cerca de um milhão de toneladas por ano, de que 60% é exportado para os países socialistas e para o Japão, Vietname, França, Itália, etc. Os seus operários, metade dos quais pertencem ao sexo feminino, ganham em média 280/290 rublos por mês e trabalham 6 horas por dia, recebendo uma alimentação suplementar que inclui leite.
Como em todas as regiões do norte da URSS, os trabalhadores recebem um suplemento de 40 a 50% em relação ao salário normal e em cada ano de trabalho um acréscimo de cerca de 10%. Têm mais 12 dias de férias que nas outras regiões e uma vez em cada três anos esta empresa, como as outras, paga-lhes uma viagem e estadia por exemplo no mar Negro.
A assistência clínica é prestada nesta empresa por diversos postos médicos consagrados às principais especialidades: medicina geral, cirurgia, estomatologia, ginecologia e obstetrícia. Está em construção um hospital privado que em breve poderá evitar quase sempre o recurso aos serviços de saúde da cidade.
Como médico, não deixei naturalmente de sempre sentir e manifestar especial interesse pelos serviços de saúde, que me pareceram bem adequados e eficientes. Registarei aqui apenas que em Bratsk para 240 000 habitantes trabalham 1000 médicos e 2500 enfermeiros em 9 policlínicas, 5 hospitais, 3 maternidades e variados dispensários. Quer dizer: 1 médico para 250 habitantes.
A cidade dispõe ainda duma escola médica, duma escola de pedagogia, duma escola musical, assim como de um museu histórico e etnográfico, teatro, cineteatro, etc., que não tivemos tempo de conhecer.
Entre os diversos locais e instalações que visitámos em Bratsk (estabelecimentos comerciais, livrarias, palácio dos pioneiros, fábrica de celulose e papel, barragem, monumento aos mortos da guerra, fruto de trabalho puramente voluntário e inaugurado apenas há três anos para comemorar o 30.º aniversário da Vitória sobre o fascismo, etc.). ficaram-nos também os olhos e a lembrança no passeio que demos uma bela manhã, floresta dentro (as árvores da floresta cercam e interpenetram também os edifícios da cidade, com os quais se entrelaçam). Fim de manhã, princípio de tarde. Temperatura muito agradável. Céu límpido, ar puro, sol primaveril. Espírito transbordante de simpatia e camaradagem entre visitantes e visitados. Tudo isto contribuiu igualmente para recolhermos as melhores impressões. Um dos quatro campos de pioneiros que já aqui funcionam em pleno. Nas férias de Verão, sempre curtas, chegam os jovens a fim de ganharem novas energias para o próximo Inverno que será sempre muito longo. Belas e cómodas instalações, feitas de madeira local. Serão utilizadas durante o Inverno como profilactórios (Bratsk já dispõe de quatro) pelos trabalhadores, que, depois do seu horário laboral, aqui vêm passar o resto do dia para repousar e retemperar a saúde, submetendo-se aos processos terapêuticos mais adequados a cada um (ginástica, banhos, lamas, electricidade médica, etc.). Passam aí a noite e na manhã seguinte regressam de camioneta ao seu local de trabalho.
Ao lado, em pequenas jaulas um tanto improvisadas, três jovens ursos, apanhados muito novos na floresta e entregues aos cuidados dos pioneiros.
Perto, descendo e serpenteando a encosta, uma estreita e longa pista para a prática do célebre desporto suíço, o bobleigh, o tobogan da montanha, que serve também de local de treino para os desportistas internacionais da União Soviética. Como em toda a URSS (e aqui com maioria de razão), as actividades desportivas e a cultura física têm grande desenvolvimento em Bratsk, que nos dizem contar já para cima de 70000 praticantes de ginástica e desporto, 4 estádios para 25000 pessoas, 4 escolas de desporto para crianças e 1 para jovens.
Mais adiante, uma das quatro torres de madeira (uma das outras três foi transportada para Moscovo como relíquia) dum velho presídio, exemplar da arquitectura do século XVII onde estiveram encarceradas centenas de patriotas russos perseguidos pelo regime tsarista.
O mar de Bratsk fica próximo. E próximo também um singelo monumento de pedra, em homenagem a um componente de uma das primeiras brigadas de voluntários que vieram para Bratsk, jovem de 22 anos que, vítima de queda infausta, fracturou gravemente a coluna, ficando paraplégico para o resto da vida. Merece referir-se a propósito que esta brigada, amputada assim de um dos seus elementos, logo decidiu continuar a trabalhar como se estivesse completa, quer dizer, levando a cabo integralmente o plano de trabalho que já fora estabelecido antes.
Culminámos essa tarde com uma visita a um jardim de infância. Em Bratsk funcionam já 119 jardins de infância, os quais, no entanto, ainda não chegam para cobrir as necessidades. Por isso, se estão a construir mais 19, destinados a 400 crianças.
Nestes jardins trabalham presentemente 1919 pedagogos (com preparação curricular de 4 anos, após os 10 anos comuns da escola geral) a que se junta o pessoal auxiliar que atinge 2500 unidades.
Neste jardim, as crianças estão divididas em 3 grupos:
a) grupo dos mais novos (dos 2 aos 3 anos);
b) grupo intermédio (dos 3 e 4);
c) grupo dos mais velhos (até aos 7) .
Aprendem aqui os primeiros rudimentos de aritmética, fonética, língua materna e língua russa, brincam, fazem ginástica, trabalhos com plasticina, desenho, música, canto e dança, desenvolvendo simultaneamente em si as regras mais elementares de um sadio espírito de convivência e camaradagem.
Com elas trabalham igualmente duas enfermeiras e uma médica.
Às crianças são distribuídas quatro refeições por dia, havendo a preocupação de nunca repetira mesma ementa mais do que duas vezes por semana.
Os pais das crianças reúnem regularmente com as professoras em cooperativo intercâmbio de experiências, indispensável e muito benéfico para o melhor aproveitamento na educação.
Como noutros locais visitados, também aqui deixámos as nossas lembranças de Portugal. Foi a vez de distribuirmos pelas crianças e pelos nossos anfitriões alguns balões do Núcleo de Mafra da nossa Associação, que tínhamos trazido de Lisboa e que, sentimo-lo bem, tocaram muito profundamente os contemplados e até os nossos companheiros de viagem.
Na terceira manhã, fomos conhecer de perto a tão falada estação hidroeléctrica de Bratsk. Recebeu-nos o engenheiro-chefe que com manifesta gentileza e agrado nos acompanhou na visita às principais dependências e nos foi dando as adequadas explicações. Embora já esperássemos vir encontrar um empreendimento de vulto excepcional, a nossa expectativa foi ultrapassada quer pela grandiosidade da obra, quer pelo entusiasmo irradiante no rosto dos obreiros com quem contactámos.
Outros grupos de visitantes nos precediam e outros nos seguiam. Cá fora, junto da barragem, encontrámo-nos com um gárrulo punhado de jovens pioneiros, que não escondiam o seu contentamento e admiração.
Para visitar esta estação hidroeléctrica bem como a cidade de Bratsk, quase todos os dias (pelo menos nesta época) chegam inúmeros grupos excursionistas, não só de cidadãos soviéticos, como de estrangeiros, na maioria oriundos dos países socialistas. Verificámo-lo logo no hotel, onde era intenso o vaivém de chegadas e partidas de clientes.
Quando se visita pela primeira vez, como nós, Bratsk - não só a sua grandiosa estação hidroeléctrica, mas também toda a vida material e espiritual que à volta dela já se estruturou -, experimenta-se um triplo sentimento de íntima alegria, orgulho e confiança nas capacidades do homem em geral (e em particular do homem soviético) para transformar, melhorar e embelezar por um lado a natureza que o cerca ·e por outro a natureza de si próprio, pois é um homem novo que se pressente estar a emergir de toda esta prodigiosa epopeia.
UST-ILIMSK
Numa das manhãs, pelas 10 horas, partimos de avião, também um lakovlev-40, de Bratsk para o norte, ao longo do Angará, e dentro em pouco encontrávamo-nos na região de Ust-llimsk, cuja central hidroeléctrica, ainda em construção mas já em funcionamento parcial e considerada a irmã mais nova da de Bratsk, se achava incluída no programa das visitas desse dia.
Antes, porém, fomos recebidos por Nina Romanovna Zimá, simpática soviética dos seus trinta e tal, casada com uma filha de 12 anos, primeira secretária do PC Regional para os assuntos ideológicos, que nos traçou uma panorâmica geral e breve deste novo empreendimento, para melhor nos situarmos.
Há 15 anos, neste local só existia a floresta, a taigá. Mas como foram aqui prospectadas imensas riquezas naturais (minérios, flora, fauna, potencialidades energéticas sedutoras, etc.), decidiram levantar sobre este troço do Angará uma nova estação hidroeléctrica, de potência igual à de Bratsk.
Em 1962, chegou a primeira brigada de construtores. Em 1964, era construída a primeira casa, habitada por dez pessoas, com que se formou o núcleo inicial da primeira aldeia. Hoje (1978), é uma cidade de 65 000 habitantes e a estação hidroeléctrica de Ust-llimsk tem já a funcionar 15 das suas 18 turbinas.
Esta estação é um duplicado da de Bratsk. Na sua construção e laboração trabalham agora cerca de 300 operários, que auferem um salário médio de 350 rublos mensais, segundo nos informou o engenheiro Kámenev, que nos guiou na visita. O salário do engenheiro principal é, porém, de 500 rublos e o do engenheiro director, de 750. Um estudante, que termina o seu curso e vem para aqui trabalhar, começa a ganhar 250 rublos mensais de vencimento base, com um acréscimo de 60% por esta estação se situar mais ao norte, em região mais inóspita. Nas outras estações mais meridionais, tal acréscimo é apenas de 40%. Além disso, recebem periodicamente prémios de acordo com a produção.
Demos depois uma volta pela cidade e visitámos em particular um bairro em construção. Os prédios já acabados ou que estão sendo construídos possuem diversos pisos (de cinco a doze), mas está previsto que de futuro poderão ser erguidos mais. As janelas, em vez dos dois vidros que se vêem em outras zonas do país, têm aqui três, devido, claro está, às temperaturas mais baixas. Cada microbairro, submúltiplo do bairro, de configuração quadrilátera, dispõe no seu interior de um espaço livre verde, onde foram deixadas as árvores da floresta e que serve além do mais, de lugar seguro para as crianças brincarem.
A cidade estende-se ao longo de 7 quilómetros, ficando com uma zona de repouso e recreio de quase um quilómetro até ao mar artificial (semelhante ao de Bratsk).
Está previsto que em 1982 poderão viver aqui 70 000 habitantes e 150 000 no ano 2000.
Presentemente, a idade média dos habitantes de Ust-ilimsk não ultrapassa os 23 anos. Nascem ali, em média, 7 crianças por dia e cada semana realiza-se 1 casamento.
Embora dispondo já das condições mais basilares duma cidade moderna, seja a nível habitacional, alimentar e sanitário (possui um hospital central de 500 camas com 1500 trabalhadores, entre os quais 200 médicos), seja a nível cultural e recreativo (biblioteca e casa de cultura para 750 pessoas, 16 jardins de infância, 107 escolas primárias e escolas secundárias para 17 000 alunos, uma casa de pioneiros para 500 crianças, um cinema, campo de futebol, etc.), estão em marcha novos planos de realizações semelhantes a empreender no mais breve prazo possível: construção de mais 75 000 habitações, de 15 jardins de infância (há já 4800 crianças que os aguardam), seis escolas, duas casas de cultura de 800 lugares, uma escola musical, um estádio para 5000 pessoas, etc.
Está planificada igualmente a construção para breve de um complexo industrial de alumínio. Desde 1972, funciona já um complexo de transformação madeireira. Nele e nas outras obras de construção trabalham cerca de 5000 pessoas, tanto cidadãos soviéticos (de 60 nacionalidades), como estrangeiros, em particular dos países socialistas do C.A.M.E., húngaros, polacos, alemães orientais, romenos, búlgaros, que também visitámos.
A participação voluntária dos jovens de todos estes países socialistas não vai sem conter um profundo significado. Podem ser várias decerto as motivações que os levam a escolher tal sorte de aventura. Em certos meios do mundo ocidental é-se tentado a atribuí-la, fundamentalmente, à mais elevada remuneração do trabalho. Esquecem-se ou ignoram-se quase sempre as inesgotáveis fontes de energia idealista ou romântica que jorram, pujantes, do coração dos jovens, desejosos de, em dadivosa actividade, se entregarem aos outros ou de ajudarem a construir algo de melhor e de mais belo que possa contribuir para sublimar a vida de todos e de cada um. Desejosos de se sentirem pioneiros num novo e grandioso empreendimento, de manifestarem o seu valor e firmeza de carácter. Força mais poderosa ainda quando os jovens são educados no espírito do internacionalismo socialista e comunista.
Dizem-me ainda que alguns deles se decidiram a vir, atraídos pelos mistérios da longínqua e legendária taigá e seduzidos pela melodia e letra de canções em voga como a "Carta para Ust-ilimsk" de Alexandra Pakhmútova, etc..
NOTA FINAL
Nesse mesmo dia, já tarde, voltámos de avião para Bratsk e na madrugada seguinte partimos para Moscovo. Chegava assim ao termo esta digressão, prenhe de fascínio, por terras siberianas.
Durante o percurso do regresso, chegou-nos o tempo para reler as notas que fôramos registando dia a dia e para recordar e reflectir sobre tudo o que de interesse víramos e vivêramos nesses rapidíssimos dias, e mais do que isso: sobre a preponderante influência, entre nós quase insuspeitada, que a Sibéria se prepara para exercer como embrião do mundo de amanhã
Bastará invocar apenas no plano material os extraordinários recursos de que ela dispõe e de que uma boa parte se encontra já em activa exploração. Quer no que respeita a quase todos os minerais úteis à indústria, quer sobretudo às suas imensas reservas de carvão, petróleo e gás, quer ao inesgotável potencial hidroenergético dos seus rios (600 biliões de kw só para cinco rios), quer a riqueza incomensurável da taigá. E bem assim os complexos industriais atinentes. Para não falar também da flora, da fauna e até da agricultura.
Antes da Revolução de 17, a Sibéria mal chegava a representar de 1,5 a 2% da produção industrial nacional, que, aliás, também era então bem diminuta. Hoje já alcançou os 10%, tendo crescido mais de 200 vezes, o que significa que a Sibéria, quanto ao ritmo de crescimento, vai à frente de todos os grandes núcleos económicos da União Soviética. Em 31 anos, de 1940 a 1971, a produção industrial global do país subiu de 100 para 1282, ao passo que, no mesmo período, na Sibéria Oriental subiu de 100 para 1641 e na Ocidental para 2238. E durante o 10.º plano quinquenal, que termina em 1980, a produção da Sibéria aumentará ainda uma vez e meia, enquanto o país inteiro subirá 35 a 39%.
Não é difícil de entrever já o enorme peso de tudo isto tanto na economia soviética quanto na economia internacional, incluindo países socialistas e capitalistas. Além das promitentes perspectivas para alargar frutuosa mente o intercâmbio entre os povos. Intercâmbio que já está sendo posto em prática, como vimos em Ust-ilimsk, com a participação dos países socialistas. Mas não só destes, pois a União Soviética tem importado também, para as suas realizações na Sibéria, diversos materiais, técnicos e serviços, doutros países (E.U.A., Canadá, Japão, França, Alemanha Ocidental, Suécia, etc.). É o caso, por exemplo, da fábrica de papel que vimos em Ust-ilimsk. Foi assinado um contrato de compensação, segundo o qual a França tem fornecido uma parte do equipamento e recebe em troca uma parcela da produção de celulose.
Através de contratos idênticos, a Sibéria está a criar e a alargar uma imensa rede de oleodutos e gasodutos que permitem levar o petróleo e o gás siberiano não apenas aos países socialistas, como igualmente à Áustria, Alemanha Ocidental, Itália, França, etc.
O desbravamento dos ásperos e infinitos recônditos da Sibéria e a utilização das suas melhores potencialidades não estão unicamente a pôr à prova como também a temperar e sublinhar as qualidades dos homens que se têm aventurado, com todo o denodo, alegria e confiança, em tão magnífico e exaltante empreendimento.
A mais impressiva recordação que pude trazer desta viagem é a de que em todo este frenesim laborativo se pressente que a Sibéria funciona hoje como gigantesco cadinho onde se está a forjar a configuração do homem novo.
Não pretendo com isto dizer que tal pressentimento seja obrigatório e geral, experienciado por toda a gente. Recordo que um dos meus companheiros de viagem, quando lhe falei nisso, comentou:
- De facto, trata-se de um fantástico empreendimento que implica grandes construções, imensas transformações. Mas a mim parece-me, continuou ele, que este fenómeno é idêntico ao que se tem passado nos países do Ocidente ou, no fim de contas, em qualquer parte do mundo. Novas cidades, novas indústrias são iguais em toda a parte.
Diante de tal comentário, e admitindo que ele é sincero, o que nem sempre sucede, é lícito conjecturar que, tal como aqueles que não sentem qualquer beleza ou sublimidade numa nova estrofe, paisagem, canção ou outra qualquer, também o meu interlocutor, por vício inato ou adquirido, se encontrava por certo falho ou depauperado do sentido do novo...
E quando em Moscovo, da janela do meu quarto no Hotel ROSSÍA, olho mais uma vez para lá do rio, sinto mais profundamente o conhecido lema de Lénine, que ali se vê erguido no ar, sobre um edifício, em grandes letras luminosas: - "KOMMUNIZM - ÈTO EST': SOVIÉTSKAIA VLAST' PLIÙS ÈLEKTRIFIKÁTSIIA VSEI STRANY!" (Comunismo é o poder soviético mais a electrificação de todo o país!)
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- Sibéria, embrião de um Mundo novo, por J. Seabra-Dinis (parte I)