andrei-rubliov Do espólio fílmico depositado no ANIM pela Associação Iúri Gagárin, vai passar na Cinemateca, na sexta-feira, 27 de Dezembro, «Andrei Rubliov», de Andrei Tarkovski. A cópia é legendada em português. A Associação dispõe de alguns convites, que disponibilizará, prioritariamente, aos seus associados, por ordem de inscrição. Contacte-nos, para geral@associacaogagarin.pt, até às 10 horas de dia 26, quinta-feira. Publicamos aqui um artigo da nossa revista Paz e Amizade, de 1982, sobre a obra.

 

ANDREI RUBLIOV

27-12-2013, 21H30 | SALA DR. FÉLIX RIBEIRO
Cinemateca Portuguesa (Rua Barata Salgueiro, Lisboa)

 

paz-e-amizade

Artigo publicado na revista Paz e Amizade,
da Associação Portugal-URSS,
n.° 28, Out-Dez 1982, pp 22-24.

 

Andréi, o magnífico

por TRINDADE LOUREIRO

 

 

ANDRÉI RUBLIOV

Produção: Mosfilm, 1966/69

Argumento: Andréi Mikhalkov-Kontchalóvski e Andréi Tarkóvski

Decoração: Evgueni Tcherniaev lóvki e Andréi Tarkóvski

Música: Viatcheslav Ovtchinnikov

Intérpretes: Anatoli Solonitsine, Ivan Lapikov, Nokolai Grinko, Irma Rauch, Nokolai Burliaiev, luri Nazarov, Roland Bikov, Iuri Nikuline, Mikhail Kononov, S. Krilov, V. Titov.

 

Antes do fim do ano, talvez, mesmo, antes da saída deste último número da nossa Revista, deverá ser estreado, entre nós, o filme soviético «Andréi Rublióv».

Um certo alvoroço que senti, ao deparar num cinema de Lisboa, em local profetizador de estreia breve, com algumas fotografias do filme, parece-me natural, tão pouco frequente é a presença de um filme soviético, nas telas portuguesas. Para mais, tratando-se de um tal filme e de um tal realizador. «Andréi Rublióv» é um filme fabuloso e Andréi Tarkóvski um dos mais eminentes cineastas da actualidade.

«Andréi Rublióv» esteve em Portugal, em 1981, durante a «Presença do Cinema Soviético», que decorreu em Lisboa e no Porto, respectivamente, de 22 a 29 de Maio e de 26 de Maio a 1 de Junho. Regressa, agora, para o circuito comercial, treze anos após a sua estreia no Festival de Cannes, em 1969, onde recebeu o Prémio da Crítica Internacional.

Andréi Rublióv, o mais ilustre pintor moscovita de ícones, nasceu em Pskov, no ano de 1360, e morreu em 1430, estando sepultado no mosteiro-fortaleza de S. Andrónicos, onde o governo soviético decidiu instalar o Museu de Arte Russa Antiga Andréi Rublióv. (1)

Contemporâneo de Van Eyck, Fra Angélico, Piero della Francesca, as suas pinturas suportam, perfeitamente, a comparação com as destes seus tão célebres e geniais confrades.

Com a acção a iniciar-se no verão de 1400, quando o artista viaja para Moscovo, acompanhado por Kirill e Daniel Tchiórni, para pintar os frescos da catedral da Anunciação, no Krémlin, o filme não é tanto da sua vida, como sobre a vida que o rodeia, que ele testemunhou e sentiu. É sobre pessoas e acontecimentos que, directa ou indirectamente, com maior ou menor força, sobre ele actuaram e, assim, contribuíram, para a formação do homem e artista que ele foi. Sobre pessoas que com ele intimamente privaram, ou que com ele apenas se cruzaram. Pessoas que o enterneceram e ele amou, que o indignaram e ele repudiou. Sobre as pessoas daqueles sítios, naquele tempo. E sobre os acontecimentos, ali e então acontecidos, por essas pessoas provocados, influenciados, sofridos ou, simplesmente, vividos. Acontecimentos quase sempre cruéis e violentos, próprios de uma sociedade em convulsa formação. E, finalmente, de como Andréi os interpretou e compreendeu, pessoas e acontecimentos, e, através da sua obra, os sublimou.

No seu extremo rigor e implacável austeridade, apesar do seu itinerário exemplarmente traçado, o filme é, desmedidamente, amplo e profundo, e complexo. É necessário vê-lo não sei quantas vezes e, nos intervalos, pensá-lo e estudá-lo, para o ver todo, para o abarcar todo, talvez. Porque falando do artista e do seu tempo, Andréi Tarkóvski está a falar de si e do «nosso» tempo. E é extremamente importante que isso se sublinhe e se compreenda porque, é Tarkóvski que o diz, «o artista é a voz do seu povo».

O preto e branco fará sempre parte da bagagem dos grandes autores de cinema.

«Andréi Rublióv» é preto e branco, belíssimo, e, só no fim, se recorre à côr, na apresentação da obra do pintor.

Numa entrevista concedida em França, em 1970, Andréi Tarkovski explica as razões de ter filmado a preto e branco e de se ter servido da côr no fim da fita: «O aparecimento da côr no fim de um filme a preto e branco permitiu-nos estabelecer uma ligação, uma correlação entre duas noções diferentes. Eis o que, no fundo, quizemos dizer: o preto e branco é mais realista porque, na minha opinião, o cinema a cores não atingiu ainda o estádio do realismo, lembra sempre uma fotografia colorida e está sempre eivado de exotismo. Psicologicamente, no seu dia a dia, o homem não é atraído pela côr — a menos que seja um pintor, consciente e voluntariamente interessado na ligação das cores, ou alguém com especial atracção pela côr. Ora, o que nos interessava, era relatar a vida. Para mim, no cinema, a vida traduz-se por imagens a preto e branco. A ligação entre o final colorido e o filme a preto e branco era para nós a expressão da ligação entre a arte de Rublióv e a sua vida. Grosso modo, isto resume-se assim: de um lado a vida quotidiana, realista, racional; do outro a convenção da expressão artística dessa vida, etapa ulterior de uma sequência lógica».

Andréi Tarkovski não é um autor prolífero. Com 50 anos (nasceu em Moscovo, em 1932), da sua filmografia constam, apenas, seis títulos, que não resistimos a mencionar:

  • «O Rolo Compressor e o Violino», de 1960: Filme de média metragem que Tarkovski realizou no fim do seu curso, no Instituto Estatal de Cinema da URSS (VGIK);

  • «A Infância de Ivan», de 1962: Filme que recebeu o Leão de Ouro na Mostra de Veneza, de 1962;

  • «Andréi Rublióv», de 1966/69;

  • «Solaris», de 1972: Filme de ficção científica, galardoado com o Prémio especial do Júri, no Festival de Cannes, de 1972;

  • «Espelho», de 1975;

  • «O Stalker», de 1979: Filme de ficção científica.

Os longos intervalos entre cada uma das suas obras, fazem crer que Tarkovski gosta de fazer amadurecer, tranquilamente os seus projectos, e que gostará de entrar na realização, sem problemas de tempo, nem pressões orçamentais. Um autêntico terror, para qualquer produtor ocidental.

Não será, também por isso, um autor de grandes audiências, já que o seu cinema nada tem de fácil, nem de ligeiro, pelo contrário, exige do espectador vulgar uma participação e uma compreensão que este nem sempre está disposto ou pode dar.

Oxalá o público português, tão cercado pelo «imperialismo cultural americano», demasiado habituado ao cinema hollywoodiano, altamente e lucrativamente sofisticado, o não evite. Se o fizer, comete um erro, pois não verá um dos filmes mais importantes da cinematografia russa e soviética, com lugar certo e destacado na História do Cinema Mundial.

 

 

(1) Huertas Lobo, (André Rubliov, in Paz e Amizade, n.° 19 - Suplemento.