(«Dom Quixote Libertado», de Lunatchárski)

Por Luís Francisco Rebello

Revista Paz e Amizade, n.º 7/8, ano II/77, pp. 29-30

Uma peca sovietica representada em Lisboa

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O Grupo de Teatro de Campolide ao mesmo tempo que, profissionalizado, apresentava no palco do Teatro da Trindade o fresco histórico de Virgílio Martinho 1383, encenado por Joaquim Benite, estreava na sua sede – onde foram montados há cinco anos os seus primeiros espectáculos – a peça de Anatóli Lunatchárski D. Quixote Libertado, interpretada por amadores numa encenação de José Martins. O facto merece ser aqui devidamente registado, pois trata-se praticamente da primeira peça de um dramaturgo soviético que se representa em Portugal. E digo «praticamente» porque a farsa de Valentin Katáev O Camarada Miússov, que a companhia do Teatro da Trindade pôs em cena no Teatro Avenida em 1967, traduzida por Olavo d' Eça Leal, se aproximava muito mais da livre adaptação francesa de M. G. Sauvajon que do original russo – e porque a censura fascista não autorizava a representação da célebre História de Irkutsk, de Alexei Arbúzov, que Luís Sttau Monteiro havia traduzido, como aliás não permitiu a montagem de qualquer outra peça do vastíssimo repertório soviético. E nem através da leitura este chegou ao conhecimento do público português – embora essa nunca deixasse de ser uma fruste compensação, já que o palco é o lugar próprio para uma obra dramática ser conhecida –, com duas ou três excepções isoladas, como O Percevejo e Os Banhos, de Maiakóvski, ou O Povo Russo, de Símonov.

Dom Quixote LibertadoE no entanto, ao longo destes sessenta anos decorridos desde a vitoriosa Revolução de Outubro, uma vasta produção dramatúrgica se formou e desenvolveu na União Soviética, caracterizada por uma variedade e riqueza de temas e estilos que desmente, de forma categórica, o pretenso monolitismo que a imprensa reaccionária mentirosamente lhe atribui. Obras como O Percevejo de Maiakõvski, O Comboio Blindado 14-69 de Ivánov, A Ilha Escarlate de Bulgákov, Crepúsculo de Babel, Lyubov Varovaia de Trenev, A Tragédia Optimista de Vishnévski, a trilogia de Pogódine sobre Lénine, O Medo de Afinógenov, A Invasão de Leónov, as peças dos contemporâneos Arbúzov, Rózov, Volódine, Zórine, Salínski – e esta lista poderia ser muito ampliada – ocupam por direito próprio, um lugar destacado no teatro dos nossos dias. Invenção teatral, humor e fantasia, emoção e reflexão, densidade psicológica e análise social, de tudo isto se encontra nessas obras, que têm como denominador comum o humanismo radical que está na base da sociedade socialista, liberta da exploração e da opressão.

LunatcharskiO nome de Lunatchárski está indissociavelmente ligado ao surto emancipador do teatro soviético, nos anos que imediatamente se seguiram ao triunfo da Revolução. Ele foi, com efeito, na sua qualidade de primeiro Comissário do Povo para a instrução pública (nomeado, sob proposta de Lénine, em 26 de Outubro de 1917), o grande impulsionador do movimento renovador da arte posta ao serviço da Revolução – e o autor do célebre decreto de Agosto de 1919, que nacionalizou o teatro, assinado juntamente com Lénine. Sabendo evitar sempre as veleidades do dogmatismo e do dirigismo e refrear os perigos da precipitação e do exclusivismo esquerdistas, Lunatchárski «incitou o movimento cultural do proletariado a compenetrar-se do espírito combativo do socialismo, a utilizar o saber como uma arma entre as mãos dos operários, e apoderar-se dos bens culturais, tanto do passado como do presente, afirmando-se em plena independência como criador de obras de arte e com o auxílio da cooperação da intelliguêntsia socialista e sem partido», como registou um dos seus biógrafos.

Dramaturgo, Lunatchárski transportou para as suas peças personagens históricas (como Oliveiros Cromwell e Tommaso Campanella) ou literárias (como Fausto e Dom Quixote), inserindo-as em acções exemplares que visam exaltar a necessidade de transformar o mundo, libertando os homens da tirania e da servidão. Aos vinte anos escreveu a sua primeira peça, A Tentação, em que o advento do socialismo era já uma aspiração irreprimível; dez anos depois, em 1906, a sátira O Barbeiro do Rei punha em cena uma revolução vitoriosa que derrubava um regime despótico. A mesma temática irá reaparecer em Dom Quixote Libertado, que data de 1922: aqui, à violência da tirania, do domínio de um homem ou de uma classe sobre todos os outros, opõe-se a violência revolucionária, libertadora da humanidade.

Porque, como Lénine costumava dizer, não é possível fazer-se uma omeleta sem se partirem os ovos...

Dom Quixote Libertado
 

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