Eurico da Fonseca, comentador científico
Revista Paz e Amizade n.º 28, ano 7/82, separata, pp. XXXVII-XXXIX
No passado mês de Setembro um avião canadiano caiu num vale, no meio da floresta. Os seus três tripulantes ficaram gravemente feridos e não puderam sair do aparelho para fazer sinais às equipas de busca e salvamento. As árvores não permitiam ver os destroços. E os sinais de rádio não podiam ser captados porque as altas montanhas em redor os interceptavam.
Os três homens sabiam que os esperava uma morte lenta, pela fome e pela sede, se antes não surgisse a gangrena. Mas a salvação surgiu inesperadamente e da maneira mais inesperada. Um satélite soviético captou os sinais do emissor de localização do aparelho, no dia seguinte ao acidente. A informação foi transmitida a uma estação terrestre perto de Ottawa e os feridos foram imediatamente socorridos.
Foi a primeira vez que um satélite permitiu assinalar o local de um acidente de aviação. O satélite em questão tinha sido lançado para o espaço três meses antes, e fora o primeiro de uma série de cinco destinados à detecção de acidentes com aviões e navios. É um exemplo da utilização pacífica do espaço cósmico pela URSS, um exemplo que se integra numa longa tradição, que tem a sua origem numa afirmação feita há 90 anos por Konstantin Eduardovitch Tsiolkovski: «O fim último da exploração do espaço cósmico não é a conquista dos planetas, a ocupação da sua superfície, mas sim a utilização da energia solar. Só uma pequeníssima parte dessa energia chega à superfície da Terra. Para a utilizar eficientemente é necessário que a Humanidade saia da Terra e se disperse pelo Espaço. A Terra é o berço da Humanidade, mas ninguém pode viver eternamente no berço.»
Tsiolkovski - o modesto professor de Kaluga que é hoje universalmente considerado como «o Pai da Cosmonáutica» - foi o primeiro homem que concebeu a utilização de foguetes propulsados por líquidos – precisamente o hidrogénio e o oxigénio liquefeitos, hoje usados nos foguetes e naves espaciais mais potentes. Foi também ele quem, pela primeira vez, analisou matematicamente o movimento dos foguetes como corpos de massa variável, expressando-o na chamada «equação de Tsiolkovski». Ignorado, desprezado pelo facto de ser praticamente um autodidacta, teve de recorrer ao que hoje se chama «ficção científica» para expor, em novelas aparentemente ingénuas mas que na realidade eram exposições magistrais de um pensamento científico dos mais avançados, as suas ideias sobre a exploração pacífica do espaço cósmico. A leitura dessas obras - publicadas na íntegra entre 1961 e 1964 - é comovente, não apenas pelo que revela da personalidade de Tsiolkovski, em particular o seu respeito pela dignidade humana e o seu amor à paz entre os povos e entre as pessoas, mas também pela soma de conhecimentos científicos que transparece e que tem a sua máxima evidência na descrição das condições existentes na superfície da Lua, perfeitamente coincidente com aquilo que meio século depois se soube ser a realidade.
Note-se que só depois da Revolução de Outubro de 1917 o professor Tsiolkovski viu os seus méritos reconhecidos com a sua eleição para a Academia de Ciências em 1918, a concessão de uma pensão vitalícia em 1921 e a concessão do título de professor honorário da Academia dos Engenheiros da Força Aérea, em 1924. Um facto pouco conhecido foi o de o lançamento do primeiro satélite artificial soviético ter coincidido com o centenário do nascimento de Tsiolkovski. Outro facto é o de a concepção das estações orbitais «Saliut» se aproximar muito da proposta por Tsiolkovski há mais de 80 anos - incluindo a utilização da energia solar e o estudo do desenvolvimento de plantas no espaço, um factor de extrema importância nas propostas do grande pioneiro, dado que ele contava com a criação de vegetais em estufas não só para a alimentação dos cosmonautas como para a regeneração do ar.
Foi na URSS que se fundou, em 1924, a primeira organização científica destinada ao estudo da exploração do espaço cósmico para fins pacíficos - a Secção de Comunicações Interplanetárias da Sociedade Científica da Academia da Força Aérea, que bem depressa se tomaria na «Sociedade para o Estudo das Comunicações Interplanetárias» e daria origem quer aos «Grupos de Estudo da Propulsão por Reacção» (GIRD) de Moscovo e Leninegrado, quer à Comissão de Comunicações Interplanetárias da Academia de Ciências da URSS. Que esta última Comissão viesse mais tarde a tomar o nome de «Comissão paro o Exploração do Espaço Cósmico para Fins Pacíficos» é algo muito significativo. Tal como o é o facto de o Tratado sobre Utilização do Espaço Cósmico em Fins Pacíficos, pelo qual foi proibida a utilização de armas nucleares no espaço e nos corpos celestes, mais tarde aprovado pela ONU, ter nascido de uma proposta soviética. Tal como o Tratado sobre a exploração dos corpos celestes, que visa principalmente a impedir a anexação de áreas na superfície da Lua e a sua utilização em fins militares, e cuja aprovação tem sido constantemente adiada.
O programa Intercosmos, inicialmente concebido para permitir às nações socialistas o acesso ao espaço cósmico não apenas como uma oportunidade de desenvolver a sua tecnologia como também de realizar experiências científicas de outro modo impossíveis, é outro exemplo de acção na utilização pacífica do espaço. As experiências realizadas, entre outros, pelos cosmonautas húngaro e cubano, são um exemplo de como a investigação espacial - no domínio da medicina, nesse caso - podem ser de imediato úteis à Humanidade. O mesmo se pode dizer dos estudos realizados pelo cosmonauta vietnamita com plantas, e se algo há a lamentar em todo o programa, é o facto de, tal como acontece em tantas outras actividades de vanguarda, a admiração pelo valor (inegável) dos cosmonautas ter deixado num segundo plano o valor, de modo nenhum menor, dos cientistas e dos técnicos que, nos países socialistas, possibilitaram a concepção das experiências e a preparação do equipamento necessário à sua realização. Que a França tivesse confiado a uma nave soviética – e ao programa Intercosmos - o envio dos seus primeiros cosmonautas para o espaço, é a confirmação do valor científico das missões realizadas - e do seu carácter estritamente pacífico,
A tudo isso - e para concluir por agora - importa acrescentar o trabalho realizado nas estações orbitais Saliut. É evidente que esse trabalho não tem por fim a guerra, mas sim a paz. A existência de um alto forno não tem por fim forçar espadas ou produzir aço para armas, mas sim estudar novas ligas metálicas, em particular para semicondutores e para a melhoria de todas as aplicações da electrónica. O estudo dos recursos da Terra e dos fenómenos meteorológicos, por meio dessas estações, está a trazer riqueza e bem estar, não só para os países socialistas mas para toda a Humanidade.
É assim que se defende a Paz.